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Grazielle Portella

Desenho de observação, observação de pensamentos: Desenhar em atos isolados.

“A perda de controlo leva à fragmentação. Estás inteira? Encontra-te a ti mesma. Permanece atenta”.

A frase da escultora Louise Bourgeois poderia perfeitamente ilustrar o cenário em que vivemos atualmente. Há um ano, confrontamo-nos diariamente com a nossa própria vulnerabilidade e sensação de liberdade. Curiosamente, é também desde o início desta pandemia, que entre telas de computadores e celulares, fragmentamos nossa atenção, procurando um aparente controle sobre nossa vida normal e nossas relações com o mundo lá fora. 

Para a maioria de nós, o viver e a presença tem acontecido sobretudo ao nível de uma telepresença. “Tele” em grego quer dizer “longe, à distância”. Tornamo-nos cada vez mais especialistas em “estar de longe”. A nossa vivência converteu-se em consumir estes fragmentos de tela que nos permitem ver o que está à distância. Vemos muito, de longe, mas contemplamos pouco. Constantemente nos afastamos do essencial, do que está perto, e aqui e agora, de nós mesmas. Para o mestre de desenho Kimon Nicolaїdes, desenhar é, na realidade, uma questão de ver – a ver corretamente – e isso significa muito mais do que dirigir o olhar . 

Kant foi o descobridor do espaço e do tempo como intuições da nossa sensibilidade. Na Crítica da faculdade de julgar, ele elabora que o desenho contribui para esquematizar as ideias, esclarecer conceitos e para a construção do gosto e da crítica. Mas, acima de tudo, para o filósofo, “o desenho pertence ao essencial, no qual não é o que deleita na sensação, mas o que apraz pela sua forma, que constitui o fundamento de toda a disposição para o gosto” . 

Desenhar estabelece uma ilha de silêncio, um oásis de atenção total entre o nosso olhar e o que nos rodeia. E, diferentemente da pintura, através de um simples traço, é possível captar a essência daquilo que vemos. Aprendemos então que o que não foi desenhado, nunca foi realmente contemplado. Descobrimos, através do desenho, que não existe nada ordinário. 

Em tempos de pandemia, o ato de desenhar tem sido um recurso para contemplar e compreender o nosso ser, as relações que mantemos e o meio ambiente que nos rodeia. Ao marcar esta experiência presente através da imagem que temos dela, o desenho permite que encontremos a realidade da experiência presente, vejamos mais claramente, mais profundamente. Segundo Betty Edwards, a sensibilidade estética pode ser aprimorada com outros métodos, como meditação, leitura ou viagens. Mas, para uma artista, esses outros métodos são menos seguros e eficazes. A artista usa um meio de expressão visual e o desenho aguça os sentidos visuais . 

No ato de desenhar, toda a artista encontra-se ante um ‘teatro de operações’, mas para poder iniciar a sua ação, a artista tem a necessidade de desenhar-se a si mesma previamente. Uma confissão realizada ante si mesma, na solidão do seu silêncio, mas também uma ‘confissão pública’ desde a qual justificar a sua ação. Neste contexto de isolamento, o plano do desenho obedece ainda mais a essa ação artística, ou em términos clássicos: ao desenho interno.

Para o realizador Andrei Tarkovsky, este é o maior desafio de qualquer artista: o de realizar um trabalho interior e esforçar-se por expressar esses valores éticos, espirituais e artísticos na sua obra. Para o diretor, é apenas a partir deste trabalho interior que nós artistas lograríamos integrar na sua obra a visão que temos de um mundo melhor.  

Neste contexto, o isolamento é uma oportunidade de procurar este olhar e esta reintegração interna. Segundo a escritora e psicanalista Dra. Clarissa Estés, “embora não seja algo desejado ou divertido, provém do isolamento um ganho inesperado. Ele elimina a fraqueza com os golpes. Ele erradica as lamentações, proporciona um insight penetrante, aguça a intuição, assegura o poder incisivo de observação e de visão de perspetiva jamais alcançados”. 

O isolamento é, então, como uma dádiva. Mas nós somos as únicas responsáveis por extrair e mostrar a beleza dele. O poeta Max Jacob ilustra esta capacidade do desenho neste verso: “Bastava um menino de cinco anos, no seu manto azul-claro, desenhar num caderno, para que alguma porta se abrisse para a luz, para que o castelo se erguesse novamente e o ocre da colina fosse coberto de flores”. 

O olhar da própria natureza de algo ou alguém é a percepção da experiência da natureza como ela se manifesta em mim, fora de mim. Essa visão do ato de desenhar é ao mesmo tempo o salto do isolamento do Eu para a comunidade de seres e coisas, no presente absoluto, a Presença Absoluta. E para o filósofo Plotino, as melhores ações, as ações da alma, vêm de nós mesmas; essa é a nossa natureza quando estamos isoladas.

O que é relevante agora é descobrirmos exatamente como nos adaptamos para viver de uma maneira autêntica e presente. Construir um mundo mais ético e sustentável implica em perceber desta experiência um exercício de atenção e cuidado com o que temos aqui e agora. Para mim, disto se trata hoje o desenhar – e o viver – em isolamento ou, fora dele. O desenho não é um algo, senão um ato. Uma atitude que requer uma disciplina de observação de um mundo que está totalmente vivo. É uma disciplina que não custa nada, que não requer gadgets. Basta um lápiz e um papel.

A ligação da mão com o olho e com o coração revela-nos algo no desenho, mas não nos explica. O desenho vai além das palavras, além do silêncio. É uma resposta da artista sobre estar viva. E se há algo que se deseja transmitir, que seja a qualidade dessa consciência e da atenção ao que é olhado, e desenhado. Tudo o que vale a pena ser olhado, vale a pena ser desenhado, mesmo em tempos de isolamento.  E, ainda assim, existem artistas cujo meio é a vida em si, que expressam o inexprimível sem lápis, pincel, cinzel ou violão. Estas pessoas não desenham nem dançam. O seu meio é ser, aqui e agora.

BIBLIOGRAFIA:

Bourgeois, L. (2002). Destrucción del padre, reconstrucción del padre. Madrid: Editorial Síntesis.

Cheng, F. (2017). Cinc meditacions sobre la bellesa. Avignonet de Puigventós: L’Art de la Memòria Edicions.

Estés, C. (1997). Mulheres que correm com os lobos (11ª ed.). Rio de Janeiro: Rocco.

Franck, F. (1972). Zen Seeing, Zen Drawing. Nova Iorque: Vintage.

Molina, J. (2003). Las Lecciones del Dibujo (3ª ed.). Madrid: Ediciones Cátedra.

Nicolaїdes, K. (1941). The Natural Way to Draw. Nova Iorque: Houghton Mifflin Company Boston.

Plotino (1999 [270]). Ennéades. Paris: Les Belles Lettres.Tarkovsky, A. (2019 [1999]). Esculpir en el Tiempo: Reflexiones sobre el arte, la estética y la poética del cine (17ª ed.). Madrid: Ediciones Rialp.

Grazielle Portella (São Leopoldo-BR, 1989) é Designer Visual, Artista e Investigadora. Atualmente realiza Doutoramento em Desenho pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, com bolsa pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 

No início da sua trajetória profissional, passou por Estúdios de Design, Editoras e atuou como mediadora de arte na Fundação Joan Miró. Ao 21 anos, começou a trabalhar na empresa Google em São Paulo onde permaneceu por 6 anos, ganhando uma sólida formação em tecnologia e inovação, criando, gerenciando e executando projetos de grande escala para eventos como as Olimpíada, Copa do Mundo e Carnaval, assim como festivais de música Rock in Rio e Sónar. Os seus projetos receberam prêmios como FWA, El Ojo, CLIO Sports and The Webby Awards. 

Nesse período, completou um Mestrado em Design Digital (2016, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), investigando interfaces tangíveis no campo da arte e do design. Em 2017, muda-se para Paris para trabalhar como Designer em start-ups, aterriçando finalmente em Lisboa, onde redescobriu uma paixão de longa data: o desenho. 

Emergindo da sua prática profissional e investigação acadêmica onde especulou sobre o uso dos meios digitais, Grazielle dedica-se atualmente a investigar o papel de uma prática contemplativa de desenho no paradoxo deste mundo em crescente aceleração e conectividade. O seu trabalho vem sendo publicado em conferências e revistas. Durante a sua formação em desenho, passou por escolas como Ar.Co (Lisboa) e Massana (Barcelona) e participará em residências como L’Air Arts (Paris). Atualmente, é também uma das criadoras e coordenadoras do projeto “Cinco Minutos de Desenho” pelo Centro de Investigação e de Estudos em Belas Artes.