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Dilar Pereira

Caderno de Campo e Ilustração Científica

Dilar Pereira

Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA), Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal

Bolseira de Doutoramento da Universidade de Lisboa, Refª. C00305O.

Resumo

Para o ilustrador científico, o caderno de campo constitui-se como espaço singular de experimentação, estudo e investigação, onde a partir da associação e registo de ideias utilizamos o desenho e notas escritas como abordagem, análise e interpretação do meio natural ou espécimes em investigação. Como tal, é um instrumento fundamental, na metodologia de trabalho do ilustrador científico, que serve de suporte às mais variadas pesquisas e investigações. 

Este texto aborda, com base numa componente experimental, realizada há uns anos, no âmbito de uma investigação de mestrado, o papel do caderno de campo no processo de construção da ilustração científica, bem como a questão do caráter científico do desenho de campo.

A problemática tem vindo a ser abordada pelo biólogo e ilustrador científico Pedro Salgado, no campo teórico e experimental, e conduziu a nossa investigação de mestrado anterior (Pereira, 2013a). Textos precedentes da nossa autoria (e.g. Pereira, 2013b) e autores como Canfield (2011), Hodges (2003), Leslie (1995), são também referências importantes.

A investigação teórica-prática culminou num projeto de ilustração científica sobre as duas espécies de cavalos-marinhos presentes na costa portuguesa, o Hippocampus guttulatus e o Hippocampus hippocampus, que pretendeu demonstrar as relações e as valências do caderno de campo como metodologia de trabalho do ilustrador científico. Um projeto no qual se desenvolveram desenhos em cadernos (trabalho de campo) e respetivas ilustrações científicas, partindo de modelos do natural e de outras fontes como espécimes conservados em formol, espécimes secos e bibliografia específica sobre cavalos-marinhos, nomeadamente, Sara A. Lourie (2004) e Whitehead (1986).  

O vídeo de cinco minutos que se apresenta, editado para esta ocasião específica, institui-se como síntese de um filme documental mais extenso, apresentado numa exposição em janeiro de 2013, na Capela da Faculdade de Belas-Artes, em Lisboa.

Como se escreveu anteriormente (Pereira, 2013b: 229), esta investigação permitiu chegar a um “entendimento do desenho como acontecimento e processo de compreensão através do olhar, que se inicia com caderno de campo, conduz a um pensamento gráfico e culmina na construção do desenho científico”, assumindo-se o desenho de campo como ação e como veículo de comunicação de ciência.

Palavras-chave

Caderno de campo, desenho de campo, ilustração científica, Hippocampus guttulatus e Hippocampus hippocampos.

Abstract

 To the scientific illustrator the sketchbook is a singular space of experimentation where from the association and registration of ideas, we use drawing and written notes as an approach, study and interpretation of the natural environment or specimens under investigation. Thus, it’s a fundamental instrument in the work methodology of the scientific illustrator that supports the most wide-ranging researches and investigations.

  Based on experimental component, accomplish a few years ago, as part of a master’s research, the subsequent text intends to inquire the role of the sketchbook in the process of constructing scientific illustration, as well as the question of the scientific character of fieldsketching.

Over the last years, the latter has been approached by Pedro Salgado, a biologist and scientific illustrator, in the theoretical and experimental field, and conducted our master’s research and thesis dissertation years ago (Pereira, 2013a). Previous texts of our authorship (e.g. Pereira, 2013b) and authors as Canfield (2011), Hodges (2003), Leslie (1995), are to be considered elemental references as well.   

Embodying an investigation both theoretical and practical that culminated in a scientific illustration project about two sea-horses species living on Portuguese shore, the Hippocampus guttulatus and the Hippocampus hippocampus, we intend to demonstrate the connections between the potentiality of the sketchbook and the scientific illustrator’s labor. A project where were developed drawings upon sketching pads (work field) and the corresponding scientific illustration, out of nature-based models and other specimens conserved in alcohol, dried specimens and specific bibliography about seahorses, namely, Sara A. Lourie (2004) and Whitehead (1986).

The five-minute video presented, edited now for this specific occasion, is a synthesis of a more extensive documentary film, presented in an exhibition in January 2013, in the Chapel of the Faculty of Fine Arts, in Lisbon.

As we wrote earlier (Pereira, 2013b: 229) this investigation allowed us to come to an “understanding of drawing as an event and an understanding process through looking, which begins with a field sketchbook, leads to a graphic thought and culminates in the construction of scientific illustration”, assuming the field sketching as action and as a vehicle for science communication.

Keywords

Sketchbook, field sketching, scientific illustration, Hippocampus guttulatus e Hippocampus hippocampus.

Introdução

Enquanto a ilustração científica consiste na representação precisa e fidedigna de um modelo biológico específico (da sua forma, morfologia, etc.), o desenho no caderno de campo, numa vertente mais espontânea, possibilita o entendimento do desenho como instrumento de pesquisa, interpretação e compreensão dos modelos. 

Como se disse a reflexão teórica e temática abordada através do vídeo de cinco minutos que se apresenta, debruça-se sobre o papel do caderno de campo como metodologia de trabalho para o ilustrador científico. Avalia-se também o carácter científico do desenho de campo, através da investigação prática assente no estudo das caraterísticas comuns e diferenças entre as duas espécies de cavalos-marinhos existentes na costa portuguesa, bem como, na compreensão da sua forma de desenvolvimento e reprodução.

Em termos metodológicos o trabalho experimental desenvolvido culminou na construção de um projeto de desenho científico, o qual o vídeo pretende descrever. Processo em que se utilizou o caderno de campo e que teve como objeto de estudo as duas espécies de cavalos-marinhos comuns na costa portuguesa, nomeadamente, o Hippocampus guttulatus (Cuvier, 1829), i. e. cavalo-marinho de focinho longo, e o Hippocampus hippocampus (Lineu, 1758), i. e.  cavalo-marinho de focinho curto. O vídeo é, pois, de carácter documental e didático, e pretende revelar a metodologia envolvida na construção do desenho ou ilustração científica, e esclarecer o papel do caderno de campo, num empreendimento desta natureza. Revela, por sua vez, o desenho como acontecimento (processo) e como dispositivo de conhecimento.

Caderno de campo: investigação 

    Normalmente combinando elementos de ciência e de história natural, e notas escritas, a natureza do desenho de campo é na maior parte dos casos experimental. Elementos como, por exemplo, a introdução de uma escala, referências de cor, registo de padrões, introdução de diagramas, gráficos ou outras formas de conceptualizar a informação, são aqueles que denunciam uma atitude científica no desenho de campo. 

O processo de investigação assentou no uso do desenho e de um caderno de campo como meio de compreensão do real e, posteriormente, como veículo de comunicação científica. 

Como se explicou em textos precedentes (Pereira, 2013a; 2013b), a primeira fase do projeto (desenho de campo) foi realizada no Aquário Vasco da Gama, em Lisboa, a partir da observação de exemplares vivos de cavalos-marinhos em aquacultura. Foram também observados e desenhados no local os espécimes conservados em formol, classificados cientificamente, respeitantes às duas espécies (H. guttulatus e H. hippocampus) que se encontram no Museu do Aquário (Figura 1).

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Figura 1: Caderno de campo, desenho de observação no Aquário Vasco da Gama, Lisboa, lápis vermelho e magenta, 59,4)x21 cm (aberto), 25 de agosto de 2011.

A recolha de detalhes realizou-se depois, com desenhos no caderno a partir de espécimes secos (dried specimens), observados através de dispositivos óticos. Os espécimes secos também foram fotografados com vista à recolha da máxima informação visual possível, de modo a melhor fundamentar o trabalho de desenho científico a realizar (Figura 2 e Figura 3). Foi ainda imprescindível esclarecer aspetos científicos e teóricos com especialistas, nomeadamente biólogos, com o intuito de confirmar a identificação e descrição correta destas espécies. Deste modo, visitou-se o Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa, para observar, através de lupa binocular, um exemplar do H. hippocampus

       A observação e análise dos modelos, através do desenho serviram para conhecer e avaliar caraterísticas morfológicas específicas, constituindo uma sólida documentação para as restantes fases do projeto. 

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Figura 2 e Figura 3: Caderno de campo, desenho de observação de um espécime seco, grafite, lápis magenta, aguarela e guache branco, 26×21 cm (aberto), 26 de janeiro de 2012.

Numa fase intermédia, fizeram-se vários desenhos com sucessivas sobreposições, nas quais se corrigiram, acrescentaram ou retiram elementos, de modo a conseguir-se o desenho base à ilustração final e o mais cientificamente correto (Figura 4 e Figura 5). 

     Determinou-se, por fim, quais as partes a enfatizar e caraterísticas a evidenciar, fundamentais à construção da narrativa de comunicação da informação científica, e que melhor serviriam à definição das pranchas finais de ilustração científica. 

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Figura 4 e Figura 5: Caderno de campo, desenho da fase intermédia (estudo características morfológicas), grafite, lápis magenta e azul, 29,7×21 cm (cada), 04 de julho de 2012.

Ilustração científica: artes finais 

  Como se descreveu também em Pereira (2013a; 2013b), nesta fase seguiram-se as convenções respeitantes à ilustração científica no campo da ictiologia, nomeadamente, a representação dos exemplares virados para a esquerda, a representação das barbatanas expandidas, contagem das placas ósseas, contagem do número de raios nas barbatanas, contagem do número de espinhos na bochecha e no olho, medição da altura, e representação plana sem inclinação. Ainda segundo as convenções, nos espécimes danificados, o ilustrador deve reconstruir as partes estragadas. Essa premissa foi respeitada uma vez que no caso do espécime seco utilizado, as barbatanas peitoral e dorsal não foram possíveis de observar, tendo sido então necessário reconstruí-las aludindo a outras fontes, como imagens, espécimes em formol e fotografias macro. E também porque na fase de campo, a observação de exemplares vivos em aquacultura, embora tenha auxiliado a compreensão, não foi suficiente, já que os animais estavam em movimento e, nomeadamente, no caso das barbatanas, estas foram muito difíceis de observar. 

As artes finais comportaram a realização das ilustrações científicas dos exemplares tipo, ou holótipos. Fizeram-se quatro desenhos correspondentes ao macho e fêmea de cada uma das espécies, em tom contínuo, a tinta-da-china sobre scratchboard, com recurso ao método de raspagem e ao stippling (técnica do ponto) (Figura 6 e Figura 7).

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Figura 6: Prancha final a partir de ilustração científica, H. guttulatus macho e fêmea, tinta da china s/ scratchboard, dimensões originais 23×30,5 cm (cada), março de 2012.

Figura 7: Prancha final a partir de ilustração científica, H. hippocampus macho e fêmea, tinta da china s/ scratchboard, dimensão original 30,5x27cm, abril de 2012.

Por fim, com vista ao complemento da comunicação científica, fizeram-se ilustrações sobre o ciclo de vida e reprodução (formas e etapas do desenvolvimento) (Figura 8) e ilustrações a aguarela, lápis de cor e guache, sobre papel e sobre poliéster, que incidem no aspeto da cor (Figura 9). Embora existam nestes peixes modificações na cor como forma de camuflagem e durante o período de enamoramento, foram utilizadas as referências mais comuns de acordo com as descrições científicas.

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Figura 8: Ilustração científica prancha sobre o ciclo de vida do cavalo-marinho, 59, 4 x 42 cm, julho de 2012, a partir de desenhos originais em tinta-da-china e lápis de cor s/ poliéster.

Figura 9: Ilustração científica, prancha comparativa das duas espécies de cavalos-marinhos da costa portuguesa H. guttulatus e H. hippocampus (machos), julho e junho de 2012, a partir de desenhos originais a lápis de cor s/ poliéster e a aguarela e guache s/papel.

Conclusões

O desenho de campo, por si só, permite melhorar a observação dos modelos, porque obriga a uma rigorosa acuidade na observação do real e das formas, o que leva a um entendimento mais profundo daquilo que é observado, suprimindo-se assim, incorreções na transmissão da informação científica. Neste sentido, o desenho de campo permite: conhecer, interpretar e compreender melhor os modelos a estudar; ver mais perto e o acesso mais profundo ao objeto de estudo; o contato com o meio natural, algo que permite acrescentar mais vida ao desenho; e uma melhor compreensão da morfologia, desenvolvimento, crescimento e comportamento das espécies. Por fim, remete para uma postura e estímulo de pesquisa e convoca uma metodologia científica e um modo de olhar próprio do campo da ciência, o que o coloca para além do campo artístico. 

O desenho científico embora determine a procura descritiva da verdade da representação, distanciando-se do caráter expressivo e artístico, promove também o encontro entre arte e ciência, ao demonstrar a identificação do pensamento do desenho na relação com o real. Para a ciência o sentido artístico do desenho está: na descrição e na capacidade demonstrativa; na relação mimética da representação, identificando-se mais com o apuro técnico e documental. 

O caderno de campo é então parte de uma experiência de entendimento, e nele se inicia o processo de compreensão através do desenho, no contacto com modelos do natural, ligando o desenho com os fenómenos físicos desse mundo natural. Desenhar no caderno de campo enfatiza a qualidade e capacidade de observação, o que faz com que seja também uma boa ferramenta no desenvolvimento das competências do desenho. 

O desenho de campo institui-se pois, a partir da observação do natural, como um discurso sobre a abordagem científica que se pretende elaborar e sobre o modo de a organizar. É um prolongamento da experiência de campo, e constitui-se como memória e informação das coisas. Estamos perante um desenho como investigação e análise que permite uma extrapolação do campo artístico para o científico, e que fornece as informações necessárias à construção das ilustrações finais de desenho científico, cuja função principal é comunicar (esclarecer, descrever, explicar) ciência.

Bibliografia

Canfield, Michel R. (ed.) (2011). Field Notes on Science & Nature. Cambridge/ London: Harvard University Press.

Hodges, Elaine R. S. (ed.) (2003). The Guild Handbook of Scientific Illustration. 2ªed. New Jersey & Canada: Jonh Wiley & Sons, Inc.

Leslie, Clare Walker (1995a). The Art of Field Sketching. Dubuque, Iowa: Kendall/ Hunt Publishing Company.

Leslie, Clare Walker (1995b). Nature Drawing – a Tool for Learning. Dubuque, Iowa: Kendall/ Hunt Publishing Company.

Pereira, Maria Dilar C. (2013a). O Caderno de Campo na construção do Desenho Científico [Dissertação de Mestrado]. Lisboa: Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa.

Pereira, Maria Dilar C. (2013b). O Caderno de Campo na construção do Desenho Científico. In Almeida, Paulo L.; Duarte, Miguel B.; Barbosa, José T. (Eds.) (2014). Drawing in the University Today – International Conference on Drawing, Image and Research (e-book). Porto: Research Institute in Art, Design and Society (I2ADS), Faculdade de Belas-Artes, Universidade do Porto, p. 229-236.

Salgado, Pedro (2009). «O Desenho Científico e o caderno de campo», A Arte do Ofício, Nº 7. Lisboa: Instituto de Artes e Ofícios da Universidade Autónoma de Lisboa: 5-6.

Salgado, Pedro (2007). «Um Desenho (Científico) para uma História (Natural)»,

Imaginar. Revista da Associação de Professores de Expressão e Comunicação Visual, Nº 48, Lisboa: APECV, julho: 6-9.

Bibliografia específica sobre cavalos-marinhos

Lourie, Sara A. et al. (2004). A Guide to the Identification of Seahorses. Vancouver:

University of British Columbia and World Wildlife Fund (Project Seahorse and Traffic North America).

Whitehead, P. J. P. et al. (editors/rédacteurs) (1989). Checklist of Fishes of the North-eastern Atlantic and the Mediterranean. Vol. II, United Kingdom: Unesco.