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Sara Amado

A grande pausa

Como a Grande Guerra ou a Grande Depressão, a Grande Pausa (como passou a ser chamado, este nosso tempo na História, por vários pensadores desde o verão passado) carrega no nome as letras capitais que fazem dos nomes nomes próprios. Próprios, mas gerais, porque são de todos. Quantas histórias há de artistas que se descobriram artistas no meio de uma estadia forçada em casa?

Normalmente em consequência de uma doença, esses confinamentos do mundo levaram-nos a lugares que nunca antes haviam experimentado. Já nós, estamos confinados todos ao mesmo tempo, sofremos de uma doença coletiva, mas mantemos uma forte ligação ao mundo, e ao mundo inteiro, permanentemente, ainda que de forma remota, ao contrário desses artistas de tempo idos. O que nos fará este confinamento? Como nos descobriremos após esta Grande Pausa? Chamo-me sara, sou mãe, arquiteta, cenógrafa, professora de desenho e penso, escrevo e seleciono álbuns ilustrados. Já ilustrei dois. Mas é como curadora que aqui
estou hoje.

Foi na arquitetura de um álbum, na cabana que as crianças tantas vezes abrem sobre a cabeça mesmo antes de saberem ler, que encontrei o lugar certo para poder ligar todas estas partes de mim e pensar o mundo. Foi isso que decidi vir hoje aqui fazer: desenhar uma curadoria para os tempos que vivemos através de uma seleção de álbuns ilustrados. Tempos em que, fechados em casa, observamos e interpretamos, o mundo e nós próprios, tal como quando desenhamos ou abrimos um álbum. Comecei por arrebanhar muitos livros, todos os livros, livros a mais.

Pensei em escolher produção 100% nacional, mas depois vi que havia escolhas internacionais incontornáveis para desenhar esta grande personagem coletiva que somos de há um ano para cá. Procurei tipos de ilustrações diferentes e formatos interessantes; ilustradores menos conhecidos e grandes estrelas internacionais; novidade e vintage; álbuns sem palavras ou só com palavras. Como mostrar toda a riqueza contida nestes objetos, supostamente infantis, dos quais me vou servindo numa tentativa de organizar o mundo? A curadoria, tal como o desenho, implica selecionar o que se quer dar a ver. Como no desenho, tenho de escolher com que linhas, manchas e espaços quero contar esta história, sob pena de, decidido o enquadramento, não parar de desenhar e acabar por tapar o desenho anulando-o a si próprio.

5 minutos de desenho 5 álbuns ilustrados para a Grande Pausa

UM LIVRO PARA TODOS OS DIAS Há mesmo um livro para todos os dias. Porque todos os dias contam uma história mais ou menos interessante. Há dias que esticam e outros que não sabemos para onde foram.


Em qualquer dos casos, o tempo ganhou agora um peso, uma presença e uma espessura totalmente diferente do tempo pré-Grande Pausa.

Apercebemo-nos de que o mundo afinal acontece sem nós, ao mesmo tempo que sentimos que não podemos viver sem ele. Descobrimos um grande amor não correspondido. VAZIO E o vazio instala-se. Na verdade o vazio já lá estava preenchido por mil e uma coisas mais ou menos importantes. O vazio pode ser difícil, mas é também fundamental para que possa ser preenchido pelo que realmente interessa. Vamos por tentativa e erro, como o Sr.

Branco, que se passeia pelas páginas, vazio até de palavras. Palavras que são tantas vezes a mais, palavrosas, palavrões. O PROTESTO Na Grande Pausa, o mundo inteiro ficou em suspenso. Engasgado, em pausa, expectante. Não escolhemos esta paragem, tal como, afinal, este pássaro não escolheu calar-se. Não protesta contra nada, apenas engoliu uma tampa e não consegue falar. Mas o seu silêncio é como uma peça de dominó que cai provocando um outro movimento.

Desse silêncio, deste silêncio, decorrerá sempre uma consequência. A que dermos espaço para acontecer — enquanto pessoas e enquanto civilização. O LOBO, O PATO E O RATO É fácil acomodarmo-nos ao que temos. Mas esse acomodar pode ter um sentido: o de olharmos para este novo enquadramento e tirarmos dele o melhor que houver para tirar. O de reaprendermos a estar, já sem a urgência e o entusiasmo de uma novidade, mas com a segurança e a força que vêm de uma decisão. Como a do rato e do pato que podem ter sido engolidos, mas comidos é que não.

O que parecia ser o fim da história, foi afinal o início de uma bela vida. Não será esta Grande Pausa afinal uma Grande Oportunidade? A GRANDE QUESTÃO E chegamos à grande questão: uma grande oportunidade para quê? O que procuramos realmente? Qual o sentido de tudo isto? Do tempo, do vazio, do mundo, dos outros, de cada um? Podemos, como o pato, não fazer a mínima ideia ou ter já algumas pistas. Mas, como uma criança ou um filósofo, os mais sábios dos sábios, não podemos parar de perguntar. A ausência de dúvida deve ser um lugar muito inóspito.

curador – aquele que tem cuidado e apreço; que zela, cuida e dá atenção a alguma coisa. álbum – branco, tábua, um conjunto de folhas para apontar informações importantes.

ilustrar – iluminar, tornar claro, explicitar, purificar via sacrifício.

Quando penso uma curadoria, seja para uma pessoa, para um tema ou para um acontecimento, na minha cabeça corre um rol de livros que tenho armazenados na minha memória e na minha experiência. Por vezes pesquiso fora de mim e dos meus lugares conhecidos para tornar o desenho o mais rico possível. Fazer curadoria também é desenhar, sim: observar, selecionar e interpretar. No sentido em que pensamos num todo e determinamos as suas partes, damos corpo a um conceito, a uma ideia, a uma observação. Tal como quem desenha, um curador, pausa, devota especial atenção a alguma coisa e faz a sua interpretação, através da sua seleção. Um livro é um lugar que se constrói, não apenas pela autoria, mas também pela leitura. Um livro não está pronto quando sai da gráfica, só fica completo quando alguém o lê. Um livro precisa de relação.

Há quem diga que abrir um livro é como abrir uma janela ou a cortina de cena de um teatro e deixar que a magia aconteça.
O livro é um refúgio, uma cabana, que configura um espaço próprio. É, por isso, como o desenho e a ilustração, uma experiência espacial. Os álbuns ilustrados são normalmente livros infantis. Livros ditos fáceis de ler e de apreender, porque têm imagens que ajudam a compreender o sentido. Mas a verdade é que a linguagem ilustrada é muitíssimo complexa, porque é simbólica e muitas vezes metafórica.

Ler uma ilustração é, por isso, mais uma operação de reconhecimento do que de conhecimento. Nada fácil, portanto. E esta dupla leitura, de texto e ilustração, constitui também um outro tipo de experiência espacial. Abrir um livro é pôr o mundo em pausa e entrar num outro lugar. Um lugar de revolução e oportunidade. A REVOLUÇÃO O tempo é de revolução. A vida virou-se do avesso e nada será como antes. Há um antes que acarinhamos, claro, mas há muita coisa para mudar. Mas se mudarmos coisas ao acaso, só porque estamos cansados, aborrecidos, inconformados, desconfortáveis, incomodados, então faremos uma revolução circular que nos levará, como ao homem do chapéu, exatamente ao lugar onde estávamos. Aproveitemos então esta pausa para a revolução. Façamos da Grande Pausa a Grande Oportunidade.

Bibliografia:

Um livro para todos os dias
Planeta Tangerina, 2004
Isabel Minhós Martin texto, Bernardo P. Carvalho ilustrações
isbn 9789898145406

Vazio
Pato Lógico, 2014
Catarina Sobral
Isbn 9789899847033

O lobo, o pato&o rato
Orfeu mini, 2018
Mac Barnett texto, Jon Klassen ilustrações
isbn 9789898868138

A grande questão
Bruaá, 2008
Wolf Erlbruch
isbn 9789898166029

O Protesto
Orfeu Negro, 2020
Eduarda Lima
isbn 9789898868824

A revolução
Alfaguara, 2017
Slawomir Mrozek texto,  Tiago Galo ilustrações 
isbn 9789896653354

Sara Amado é mãe (há 16 anos), arquiteta — FAUTL (há 22 anos) e dá aulas de desenho (há 14 anos).

Nasceu em Lisboa (há 45 anos), cidade onde vive.

Trabalha em áreas diversas, como arquitetura, design gráfico, design (prémio no concurso Designwise 2.0 da Experimenta Design, 2004) e cenografia (prémio da Mostra Estatal de Teatro de Nuevo Leon, México, 2002).

Foi responsável pela cenografia e figurinos da companhia Lilástico (1999 a 2006) e da companhia Ninguém (2014 a 2020). Trabalhou com os encenadores Marcos Barbosa, Catarina Requeijo, Jacinto Lucas Pires e Ivo Alexandre.

Escreve sobre livros infantis no site que criou — prateleira-de-baixo — desde 2009.

Ilustrou dois livros infantis da coleção Quem, com texto de Jacinto Lucas Pires (Editora Paulinas).

Tem-se especializado na curadoria de livros infantis, tendo desenvolvido a Biblioteca do Público — Livros espetaculares (mesmo!) (2018), para o teatro LU.CA — Teatro Luís de Camões, em Lisboa.

O pacote™ é um serviço de curadoria personalizada, que criou em 2016, em que escolhe e envia dois livros por mês especialmente para cada criança inscrita.

No festival Lisboa5L, (2020), foi responsável pela curadoria e coordenação da equipa d’A janela.

sara@prateleiradebaixo.com 

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instagram.com/prateleira_de_baixo/