ATELIER
“São como se fossem talismãs ou qualquer coisa assim, mas é uma espécie de sapato (temos tinta agarrada e tudo), ou de sandálias que desapareceram do bordo do vulcão.
Este limitei-me a recolhê-lo, porque era do chão de um outro ateliê que tive antes deste. Isto eram detritos de tinta e a trincha ficou embebida nos próprios detritos e eu arranquei aquilo, porque o chão também estava forrado de plástico, arranquei este pedaço e transportei-o para aqui, colei-o com óleo, aliás vê-se aqui a mancha da gordura no papel. E o resto, pronto está por aí.
Uma série de desenhos, é sempre a mesma imagem, porque é feito a partir de uma pintura do Goya. Uns desenhos grandes. É uma pequena pintura do Goya feita durante as invasões francesas que são uma série de figuras que estão a fazer pólvora no meio da paisagem. E eu fiz uma série de (depois olha eu trabalho assim como estou agora, passo os dias assim, desenho assim e depois ponho na parede, quando está mais mais desenvolvido, para ver, para ganhar alguma distância e para ver se resulta ou não.
Eu vou fazendo, às vezes sem nada em mente, às vezes até de uma forma muito perdida, quase de forma equivocada, mas sempre na esperança de que haja um desvio qualquer, um instante qualquer que faça a diferença. Quando isso ocorre, o trabalho depois ganha um certo sentido. E pronto é assim que eu trabalho normalmente, é um bocado o que acontece. Eu chego aqui e começo com o mesmo desenho, aliás, destes são uns doze ou treze e estão aí uns restantes no chão. Eu vou fazendo e fi-los sinceramente. Todos os dias venho e acrescento um risco em relação a qualquer coisa, porque há sempre inevitavelmente qualquer coisa que não aguenta os dias, não é.
Como se tivesse havido num tempo uma dívida que também a mim me tivesse atingido, mas a dívida na verdade não ocorreu, existe só essa falta, e isso faz com que tenha que, todos os dias, enfrentar essa falta ou essa dívida contraída. Isso faz também com que eu, muitas vezes, prolongue os trabalhos, para que não haja um dia vazio, um dia sem pagamento.
Estes trabalhos têm mais cor, mas depois também têm muitas sujidades, muitos detritos, muitos acidentes. Portanto, também lhes traz um escuro.
Eu não sou capaz de pensar a cor sem matéria, porque a cor para mim tem corpo. Daí a espessura das tintas, tem a ver com isso, por exemplo, aquelas são pinturas que estão acabadas ou esta aqui. Quer dizer, têm uma densidade de matéria, quando nós chegamos perto, vemos que tem camadas e camadas. E são pinturas umas com as outras, feitas e desfeitas de voltar a fazer. Esta é outra pintura que anda aqui à deriva há que tempos, já deu muitas voltas, já assumiu, também já tem umas camadas muito grandes e ainda não sei como é que irá terminar.
Há uma coisa que eu sinto em mim, talvez isso tenha alguma coisa a ver com desenho ainda, é que os materiais utilizados e principalmente os suportes utilizados (por exemplo uma diferença clássica entre desenho e pintura, se é papel, tela ou madeira, se bem que muitas vezes haja, há desenho sobre tela ou sobre madeira e há pintura sobre papel não é), portanto, também não serve como ponto de diferença, mas para mim, eu tenho com o papel uma atitude diferente da que tenho com a tela. Há ali uma coisa qualquer que logo na origem faz diferença.
E talvez isso seja qualquer coisa que, mesmo não sabendo se faz a diferença entre desenho e pintura, mas é qualquer coisa que faz a diferença em mim. No meu caso, no caso dos meus trabalhos, é qualquer coisa que faz diferença entre os trabalhos sobre papel e dos outros.
Se eu vir dois objetos, duas coisas, posso achar que uma é desenho e outra é pintura naqueles casos. Mas as razões que eu posso encontrar, ou o argumento que posso conseguir desenvolver, para justificar naquela situação precisa, pode ser completamente destituído de qualquer sentido ou consequência numa situação que seja outra que não aquela. Portanto, assim em termos de coisa genérica que sirva para, de um modo relativamente seguro, criar uma distinção clara entre o que é linguagem do desenho e o que é linguagem da pintura, eu não tenho essa coisa genérica.
Havia aquela pergunta que alguns teólogos da Idade Média faziam e que era “onde estamos quando estamos no mundo?”, e, de facto, é uma pergunta muito inquietante e plena de sentido, ou então depois a Hannah Arendt faz uma adaptação desta pergunta e questiona “onde é que estamos quando estamos a pensar?”. Eu não sei se quando estamos a fazer isso se estamos cá.
Aquilo que eu disse há bocado, que às vezes repetia ou fazia, que usava uma imagem durante o tempo que ela durasse para logo no trabalho ter esse sentido da finitude dele próprio e que ele não iria durar sempre. Eu acho que isso já é uma forma de, progressivamente, me ir habituando a essa ideia de haver um dia em que já não acontece nada. Mas eu preferia que ele não acontecesse, que ele não ocorresse.
João Jacinto (Mafra, 1966) vive e trabalha em Lisboa.
Em 1985 iniciou os seus estudos artísticos na E.S.B.A.L.
Desde 1999, docente na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
http://www.joaojacinto.eu/