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Diogo Costa

Paisagem Análoga

O pó de carvão polvilhado, tal chuva, cai sobre a superfície de uma folha de papel para romper a sua branquitude. Nas manchas de pó mais soltas, que se vão sobrepondo em rajadas, cultivo um solo fértil à subjetividade do meu olhar, e dia após dia, pelo toque e pelo gesto, desenho no deslocar e no varrer desta matéria sobre a superfície.

Manchando a pele e o papel, as manchas de carvão fazem-se permeáveis, e entre o desenhar e o observar à distância, formula-se uma conversa silenciosa com aquela imagem no porvir.

Na intenção e no temperamento dos gestos, dos rastros e do sopro, apago, adiciono, sobreponho e estendo o carvão para tocar “quase” todas as áreas do papel. Da combinação dos tons e das direções que modelam as formas, surgem as baías, os cumes, as colinas, os vales, o fumo e a névoa, os solos áridos e os pântanos, as clareiras, os reflexos e as sombras, as transparências e as oclusões. Tão imprevista quanto acidental, a paisagem altera-se e transforma-se à medida que escurece o dia e a folha de papel.

Há no carvão, como na mancha, uma certa qualidade volúvel que motiva à improvisação e que serve o meu propósito de explorar um intervalo entre o planeado e o espontâneo no ato de desenhar.

Ao chegar ao último estágio deste processo, círculos que foram previamente dispostos segundo princípios de composição visual, revelam-se nas únicas áreas intocadas pelas minhas mãos e pelo carvão. Numa dicotomia, estes “pontos cegos” ora interrompem, ora integram-se, ora tapam parcialmente a paisagem, ensaiando uma distração que se faz pela propensão do olhar de se deslocar em movimentos sacádicos.

Na tensão entre a visão periférica e a visão focal, o olhar é impelido a ver a totalidade da paisagem ou a focar-se nos “pontos cegos” que lhe parecem pertencer e não pertencer, e no limiar entre ver e não ver, uma paisagem imaginada, análoga ao olhar de quem a observa, emerge da interpretação que ocorre pelas partes que lhe faltam.

Bibliografia

Rosa, António Ramos, 2000, 2005. O Aprendiz Secreto. Quasi Edições. Vila Nova de Famalicão. ISBN 989-552-138-3

Merleau-Ponty, Maurice, 2013. O Olho e o Espírito. Nova Vega [s.l.] ISBN 9789726999942

Merleau-Ponty, Maurice, 2002. Phenomenology of Perception, Routledge – Routledge Classics, New York. ISBN 978-0-415-27840-9

Bachelard, Gaston, 1969. The Poetics of Space. Beacon Press. Boston, Massachusetts. ISBN 0-8070-6473-4

Calvino, Italo, 2006. As cidades Invisíveis. Editorial Teorema, Lisboa. ISBN 972-695-374-X