Auto-Retratos e Consolação
Aceitando o convite para falar durante 5 minutos sobre um tema do desenho que tenha investigado, decidi debruçar-me sobre o auto-retrato não na perspetiva de um desenho executado pontualmente num momento da nossa vida, mas sim na experiência acumulada de vários auto-retratos feitos ao longo da vida.
O auto-retrato, ao contrário do retrato do outro, é um terreno propício à experimentação e alteração da aparência da fisionomia assim como das regras de decoro. (imagens) No auto-retrato a manipulação da aparência através do grafismo ou da alteração, exclusão ou acentuação de diversos aspetos fisionómicos ocorre com mais liberdade e imaginação. Bachelard no seu livro A Água e os Sonhos a propósito da história de Narciso, fala da dimensão naturalizante que o espelho de água dá ao nosso reflexo.
E a ideia é, assim como a agitação da água devolve uma imagem mais poética e menos geometrizante que a fria imagem de um espelho de vidro, também pelo próprio desenho, e pela vontade de mexer nos traços do rosto, conseguimos anicharmo-nos na nossa íntima contemplação com um orgulho inocente e natural que depende da nossa imaginação. O nosso rosto reconstrói-se lentamente na materialidade do desenho, dos seus materiais, tons e cores para encontrar a sublimação numa ideia ou num ideal. Assim, em algo de novo que os traços do desenho trazem, encontramos o sossego de poder dizer que não me vejo tal como sou, mas sim sou tal como me vejo.
No auto-retrato tirado do natural os olhos e o olhar fazem-nos prisioneiros da nossa vontade de querermos ser tal como nos vemos.
E é essa vontade que prepara os olhos para encontrar o que nos orgulha e nos consola. A repetição de auto-retratos desenhados ao longo da vida confronta-nos com a memória dessa procura de ver como queremos ver, de um olhar que em si próprio prepara o que quer dar a ver. O que quis e o que já deu a ver é algo que ocorre em cada auto-retrato. Apesar das alterações do tempo existe um estímulo que desencadeia intensas lembranças do passado que, como uma memória proustiana (ou memória involuntária), evoca tempos que vivemos tão distantes, mas também ainda num agora tão presente.
A amplitude de um certo arco na maçã da face que se repete na asa do nariz, um particular reflexo de luz mais uma vez circunscrito num ponto do olho, as sombras fugidias e ondulantes projetadas sobre a goteira do lábio, o cheiro e a constante sujidade dos materiais ressuscitam singelas lembranças de formas e de experiências, esquecidas no fundo da nossa memória.
Ao desenhar um novo auto-retrato não é o tempo que é redescoberto, mas sim a redescoberta daqueles traços do rosto que intemporais marcam o trajeto da nossa existência acumulada num momento. Assim, lentamente o desenho leva-nos a revivermos as imagens dos antigos auto-retratos e a percebermos não só como existimos num passado duradouro como ainda existimos num presente eterno.
Os auto-retratos transportam esses momentos vividos tão intensamente que um forte prazer nos atravessa e enche de alegria.
Deste modo o auto-retrato confronta-nos com o conhecimento de algo da nossa vida interior e, cumprindo um dos objetivos principais do retrato, com o poder de evocar alguém distante. Mas no caso do auto-retrato, tanto quanto evoca aquele que já viveu a partir do próprio que ainda vive, também o antecipa num futuro evocador sem fim.
Ou seja, uma das formas que temos de ultrapassar a morte, é deixar algo de que ela não nos pode tirar e que é, segundo Vladimir Jankélévitch precisamente o facto de termos vivido e existido.
O facto de termos vivido uma vida efémera feita de momentos pontuais e passageiros, é testemunhado de um modo íntimo e natural pelos auto-retratos desenhados em diversos pontos da nossa vida. Quando os fazemos e os contemplamos percebemos que estamos perante algo de nós que permanece eterno e que nem a morte poderá aniquilar.
Assim, quando desenhamos mais um auto-retrato, quando tentamos alcançar mais uma vez a lógica dos nossos traços, quando lentamente corrigimos o nosso reflexo especular com uma dimensão mais humana e natural com tudo o que o nosso traço permite, estamos mais uma vez ligados às nossas memórias e antecipamos já as memórias de um futuro para além da morte. Sentimos saudade desse futuro antecipadamente vivo, e consolamo-nos com a ideia de que toda a consciência desses momentos vai ecoar na nossa memória.
E é neste sentido que acredito que quanto mais auto-retratos fizermos num maior espaço de tempo, mais a consciência de que vivemos permanecerá como um facto eterno sentido até nos dias mais cinzentos da nossa própria existência.
ESTE TRABALHO É FINANCIADO POR FUNDOS NACIONAIS ATRAVÉS DA FCT – FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA, I.P., NO ÂMBITO DO PROJETO “UIDB/04042/2020”