no VENTRE do PEIXE
O livro de Jonas é um dos mais pequenos da bíblia, mas sempre inspirou artistas e outros autores desde, pelo menos, a arte das catacumbas. O profeta rebelde terá vivido algures no século VIII a.C., mas calcula-se que o livro tenha sido escrito três séculos mais tarde. Jonas ficou conhecido por ter sido engolido por um grande peixe, passando lá dentro três dias e três noites. Tudo por ter recusado dirigir-se a Nínive, a capital do grande império Assírio.
Jonas, nome hebraico que significa pomba ( יוֹנָ֥ה | yonah), ficou para sempre ligado a esta história mítico-fantástica de alguém que precisou de um confinamento forçado até ser vomitado – outras traduções possíveis da palavra hebraica ( וַיָּקֵ֥א | wayyāqê) são cuspido ou regurgitado – indicando o tempo certo para voltar a terra firme.
De dentro da barriga do peixe, o autor da narrativa (este sim, desconhecido), atribui a Jonas um cântico/oração que é uma autêntica ode académica. Não havia ainda notas de rodapé, mas ele cita vários Salmos, o livro de Job ou o das Lamentações. Agarra-se a tudo o que lhe é possível para conseguir alicerçar o seu pedido de chegar a território seguro, como que mostrando que não bastam as próprias ideias para se tomar decisões. É preciso procurar as “raízes das montanhas” como ponto de partida. Estará o autor do texto a falar de Jonas ou da sua contemporaneidade?
Na minha investigação em Belas-Artes – Desenho, os textos bíblicos são uma base de trabalho que me colocam a desenhar a partir do sentido do texto e não da sua ilustração. Nesta linha, o vídeo que se apresenta para o evento 5 minutos de Desenho mostra o momento em que é iniciado um desenho da serra de Sintra, feito a lápis de grafite, cerca de trinta minutos antes do pôr do sol e continuado até à ausência completa de luz solar. Com a escuridão, a imagem do desenho desaparece naturalmente e a metáfora de entrar no ventre do peixe estabelece-se pela ausência de luz. Faz-se um parênteses apenas para fazer notar que se encontrem várias traduções para o “ventre” do peixe, utilizando-se por exemplo a palavra “barriga”. No original em hebraico, a raiz da palavra ( מֵעֶה | me’eh) pode também significar partes ou órgãos internos, o que amplia as possibilidades de interpretação para o processo criativo. O que se pode encontrar de visceral no interior da escuridão?
O vídeo continua até ao amanhecer o que, lentamente, faz o desenho aparecer novamente. Já numa nova folha e usando diretamente a tinta da china pura e diluída com a ajuda de trinchas, pincéis, galhos e aparos, a força da escuridão levou o desenho para uma nova direção. A delicadeza que o lápis de grafite mostrava foi substituída pela rudeza texturada a pincel da tinta da china.
Jonas decidiu dirigir-se a Társis em vez de Nínive. Apanhou um barco e o mar tumultuou-se ao ponto dele ter de ser atirado ao mar. Foi engolido por um grande peixe. Teve o seu tempo de confinamento visceral, foi regurgitado e, finalmente, percebeu que tinha mesmo de ir a Nínive.
Saber que se tem de percorrer um caminho, mas evitá-lo, parece ser algo que atravessa o nosso ser desde há vários milénios. Talvez desde sempre. Recuperar os textos bíblicos para o ventre do processo artístico nunca me pareceu tão importante e visceral como agora.
Texto narrado no vídeo (Jn 2, 1-11):
O Senhor fez com que ali aparecesse um grande peixe para engolir Jonas; e Jonas esteve três dias e três noites no ventre do peixe. Jonas fez esta oração ao Senhor, seu Deus, do ventre do peixe, dizendo:
«Na minha aflição invoquei o Senhor, e Ele ouviu-me.
Clamei a ti do meio da morada dos mortos, e Tu ouviste a minha voz.
Lançaste-me ao abismo, ao seio dos mares, e as correntes das águas envolveram-me.
Todas as tuas vagas e todas as tuas ondas passaram por cima de mim.
E eu já dizia:
‘Fui rejeitado de diante dos teus olhos.
Acaso me será dado ver ainda o teu santo templo?’
As águas me cercaram até ao pescoço,
o abismo envolveu-me,
as algas pegavam-se à minha cabeça;
desci até às raízes das montanhas, até à terra cujos ferrolhos me prendem para sempre.
Mas Tu, Senhor, meu Deus, salvaste a minha lama do sepulcro.
Quando desfalecia a minha alma lembrei-me do Senhor;
a minha oração chegou junto de ti, até ao teu santo templo.
Os que se entregam a ídolos vãos abandonam a sua fidelidade.
Eu, porém, oferecer-te-ei sacrifícios com cânticos de louvor e cumprirei os votos que tiver feito, pois do Senhor vem a salvação.»
Mário Linhares estudou na António Arroio, licenciou-se em Design Paisagístico e depois em Design de Equipamento. Trabalhou nessas áreas, mas rapidamente a sua paixão de infância falou mais alto e dedicou-se ao Desenho. Mestre em Ensino das Artes Visuais, está a terminar o Doutoramento em Desenho na FBAUL. Desenha compulsivamente e idealiza, sem parar, projetos artísticos e humanitários. É casado, tem um filho, gosta de andar a pé e de bicicleta e de conversar com os amigos. Professor, co-fundador dos Urban Sketchers Portugal, foi diretor de educação dos USk e lidera atualmente vários projetos artísticos e sociais como os 5 Minutos de Desenho; USk Research; USkTalks; Sketch Tour Portugal Reload; Zambujal 360.
Co-autor do livro Diário de Viagem | Costa do Marfim, premiado em França, contribui com desenhos para diferentes livros, exposições, palestras ou conferências em Portugal e no estrangeiro. Viajar, sonhar e desenhar é o que mais gosta de fazer.
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ESTE TRABALHO É FINANCIADO POR FUNDOS NACIONAIS ATRAVÉS DA FCT – FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA, I.P., NO ÂMBITO DO PROJETO “UIDB/04042/2020”