Diário Gráfico. Uma coleção de memórias imperfeitas
Vou falar 5 minutos sobre desenho. Desenho de observação, feito no sítio, no próprio local e, importante, tendo como suporte um caderno. É importante ser um caderno como suporte
porquê?
Porque pressupõe que não estamos a fazer o desenho para mostrar, para comercializar, para o emoldurar. Estamos a fazê-lo para nós próprios e só o mostramos se, e a quem quisermos. Isso faz toda a diferença. Há quem o faça e o mostre nas redes sociais, há quem até os edite em livro. Mas isso é outra história e já vamos falar sobre isso.
Há cadernos de todos os formatos e tamanhos. A4, A5 ou A6. Na horizontal ou não. Eu, os que prefiro e uso mais, são os A6. Por caberem no bolso e poderem ser usados discretamente.
Desde sempre artistas plásticos, viajantes, cientistas, usaram e continuam a usar um caderno para registar notas em qualquer lugar e circunstância. Aliando, muitas vezes, a imagem à escrita. É o caso dos viajantes-exploradores.
(Jakobsson, Andrea, Caderno de Viagens, Estúdio. Rio de janeiro, 2018)
Este caderno foi chamado pelo nosso, meu e de outras gerações antes e depois, mestre Lagoa Henriques, que lhe chamou Diário Gráfico. Honra lhe seja feita. Onde se aliava a escrita, o desenho e o registo diário, quotidiano. Lagoa Henriques admirava muito o arquiteto-escultor- pintor Le Corbusier, que chamava a este caderno: “Caderno de Procura Paciente”. Um exemplo. Cadernos facsimiles de cadernos das suas viagens à Alemanha, Grécia, Turquia e Leste Europeu. Usa o caderno como observação e investigação do que lhe interessa – arquitetura, os clássicos. São viagens de formação.
(Le Corbusier, Les voyages d’Allemagne. Carnets e Voyage d’Orient. Carnets, (Ch.E.Jeanneret). Mondadori
Electa spa. Milão, 2002)
Uma viagem de Fernando Távora, em 1960, de 4 meses, com bolsa da Fundação Gulbenkian, por vários países: EUA, México, Japão, Ásia, Egipto, Grécia.
(Távora, Fernando, Diário de Bordo. Casa da Arquitectura. Porto, 2012)
Como viagem de formação também temos a primeira viagem a Paris de Pablo Picasso.
Focou-se em pessoas.
(Picasso, Carnet de Paris. 1900. Editorial Casariego. Madrid, 1995)
Um projeto pessoal muito interessante é o de Jorge Colombo nos seus primeiros tempos nos EUA. Focou-se nas pessoas e tentou ter um “retrato do novaiorquino tipo” (Projecto
Daillies). Também me atraiu o seu lado do registo do quotidiano, das coisas sem importância, da parte desinteressante das cidades.
(Colombo, Jorge, Fullerton. Bedeteca de Lisboa/CML. Lisboa, 1999)
Também fruto do “não saber o que fazer”, António Jorge Gonçalves começou em Londres o seu projecto “Subway”, desenhar pessoas no metro, que depois prolongou por várias cidadesbno mundo inteiro.
(Gonçalves, António Jorge, Subway Lif. Assírio&Alvim. Lisboa, 2010)
Ou David Hockney que desenhou os arredores da sua casa em Yorkshire. São simples aguarelas.
(Hockney, David, A Yorkshire Sketchbook. Royal Academy of Arts. Londres, 2012)
Ou ainda, o escultor Henry Moore que, num atelier emprestado, onde preparava uma exposição, focou a sua atenção nas ovelhas que via da janela. Encheu um caderno com desenhos fabulosos.
(Moore, Henry, Henry Moore’s Sheep Sketchbook. Thames & Hudson. Londres, 2005)
Apesar deste tipo de desenho ser de observação no sítio, a imaginação também tem o seu lugar. Um exemplo extremo dum caderno com este tipo de desenho é o que Frida Khalo fez durante um período que esteve praticamente acamada. Este caderno foi um verdadeiro interlocutor com as suas preocupações.
(Khalo, Frida, El Diario de Frida Khalo. Un íntimo autorretrato. Editorial Debate S.A. Madrid, 1995)
Um projeto muito curioso, focado num tema, é o de Rolf Schroter, alemão de Berlim, que durante um certo tempo, foi diariamente a um terminal de autocarros desenhar o que se estava a passar. São desenhos rápidos que tentam transparecer o que se passava durante aquele tempo.
(Schroter, Rolf, One hour wait. Pushing your sketching boundaries. Newbury, 2018)
Mas o que este tipo de desenho, desinteressado e, em certa medida, inútil, faz muito bem, é a ligação com a viagem. Podemos mesmo chamar Diário de Viagem. Tempo onde estamos verdadeiramente disponíveis para observar, experimentar e desenhar. Temos tempo e curiosidade. Já vimos as viagens do arquitecto Le Corbusier e de Fernando Távora. Verdadeiras viagens de estudo que lhes serviram de inspiração para toda a vida.
E todos nós conhecemos a viagem de Eugène Delacroix ao Norte de África, que o fez mudar de rumo na sua obra pictórica.(“Delacroix. Viaje a Marruecos. Acuarelas”. Bibliothèque d’Images. Paris, 2000)
Numa viagem bastante mais modesta, mas que mostra a sua disponibilidade, João Catarino fez, numa carrinha “pão de forma” e com o seu cão Buggy, a Estrada Nacional 2.
Estes desenhos foram editados em livro.
(Catarino, João, EN2. Livraria Fernando Machado. Lisboa, 2010)
A partir de desenhos de viagem têm-se feito muitas edições de livros. Gostava aqui de fazer a distinção entre aqueles livros de viagem, que são uma espécie de guias, uma coleção de “postais ilustrados”, de imagens dos sítios mais conhecidos e que os outros gostavam de ver.
E os que são uma espécie de réplica do caderno original (que são os que me interessam) e que são uma coleção de momentos que o autor viveu (serão estes mais pessoais e, por isso, menos comerciais).
Pela minha experiência, já me aconteceu várias situações diferentes. Fazer a viagem sem nenhuma espécie de objetivo a não ser desenhar para mim. Mais tarde surgiu a oportunidade
de editar em livro. Fiz uma seleção e apresento os desenhos integrais e por ordem cronológica. Aconteceu na viagem a Cabo-Verde e à América Latina.
(Salavisa, Eduardo, Diário de Viagem de Cabo-Verde. Quimera. Lisboa, 2011)
(Salavisa, Eduardo. Caderno da América Latina. Edições Afrontamento. Lisboa, 2017)
Outra maneira: Uma encomenda municipal ou da própria editora. No primeiro caso na vila de Caminha.
(Salavisa, Eduardo, Caderno de Caminha. CMCaminha, 2018)
No segundo caso no Porto.
(Salavisa, Eduardo, Caderno do Porto. Edições Afrontamento. Porto, 2019)
A condição que pus foi fazer os desenhos sem nenhum constrangimento e por onde eu
quisesse, sem nenhuma limitação ou obrigatoriedade. Não faço “bilhetes postais”, registo momentos pessoais.
Para mim estes desenhos são isto. São registos do momento que o desenho demora a fazer.
Do tempo que nós demoramos a fazê-lo. O que aconteceu naqueles minutos? Que memória fico a guardar daquele local? Seja uma praia, uma viagem de metro, uma esplanada.
E os desenhos são imperfeitos tais como as memórias. As memórias são construídas pelo que vivemos, pelo que nos contam, pelo que pensamos que aconteceu. Os desenhos são feitos pelo que selecionamos, pelas manipulações que fazemos, dando mais ênfase a umas coisas em detrimento de outras.
ESTE TRABALHO É FINANCIADO POR FUNDOS NACIONAIS ATRAVÉS DA FCT – FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA, I.P., NO ÂMBITO DO PROJETO “UIDB/04042/2020”