Categorias
6 Julho 2020

Manuel San Payo

Diário Gráfico. Nulla Dies Sine Linea

Nulla Dies Sine Linea Apeles (Plíneo) “regardez ma vie, lisez mon journal à travers mon oeuvre” / Je suis mon Cahier Pablo
Picasso

O meu primeiro diário gráfico é de 1982 (mais precisamente, e segundo a primeira entrada inscrita, dia 11 de Novembro). Começou após o meu ingresso na então Escola Superior de Belas-Artes, a actual Faculdade de Belas-Artes, onde agora trabalho como professor auxiliar na área de Desenho.

A prática da manutenção de um diário gráfico era-nos entusiasticamente sugerida pelo professor escultor Lagoa Henriques, na sua quase lendária aula de Comunicação Visual. Era uma espécie de imersão iniciática no mundo das artes visuais, que abordava temas tão vastos que iam das artes do espectáculo ao cinema, passando pela pintura, a escultura, a arquitectura, a televisão e, claro está, subjacente a todas estas expressões, a presença do desenho.

O diário gráfico funcionava como o nosso fiel caderno de notas ou apontamentos de assuntos ou temas tratados em aula, mas fazia a ligação com a vida extra-muros, o treino para uma atenção ou focagem em assuntos de interesse artístico observados no dia-a-dia. Nesse sentido, o caderno ou diário gráfico, muito característico do estudante das belas-artes (e diferente das sebentas das demais instituições de ensino superior) era um laboratório de registo e experimentações diversificadas e de descobertas variadas, de registos gráficos: Escrita, colagem, desenho, pintura, e o mais que ocorresse. Este caderno seguia um certo modelo ou moda associados a um tipo específico de artista/intelectual, ainda herdeiro do flâneur/boémio baudelairiano e modernista:

O diário gráfico usa-se para a prática duma espécie de “higiene” diária ou “Gymnaseion” de desenho que é considerado a base fundamental das linguagens ou expressões plásticas. É também um suporte, prático, e de fácil acesso para o registo rápido de esboços ou ideias (rapidez essa em boa parte explicada pela simplicidade e escassez de meios envolvidos).

O desenho num diário gráfico revela normalmente uma linguagem que se afigura, precisamente por essa razão, das mais próximas daquilo que consideramos serem as ideias, e foi por isso adoptado por correntes mais ou menos idealistas e românticas que cultivavam o esquisso, o esboço incompleto ou inacabado, com todas as suas falhas e arrependimentos. O desenho é precisamente considerado como dos registos mais “honestos”, por vezes mesmo contra a vontade ou as intenções do próprio autor. Este é o lado pedagógico e de auto-aprendizagem que a utilização continuada de um diário gráfico nos permite ao longo da vida. Outro aspecto a considerar é o que se prende com a própria existência: o diário gráfico é um modo de registo e aferição do tempo.

Podemos ver nele, também, um objecto com uma carga metafórica mais ou menos implícita: Apresenta-se tipicamente como um pequeno livro de bolso (da família do codex). Como qualquer livro, é uma colecção de cadernos, que são por sua vez folhas de papel dobradas e ligadas por um sistema que as transforma em páginas. As páginas têm frente e verso, podem ser lisas ou pautadas. Por estarem solidariamente presas, têm de ser viradas, mudadas. Este virar da página cria sequências, com todas as possíveis formas e sentidos de leitura e associações. Seja como for, este modelo ou formato implica a interrupção, mas também a ligação e a elipse, em unidades que sugerem quadros, ocupando frente, verso e página dupla. Um diário gráfico raramente se concebe na forma da espiral ou rolo, ou seja, em modo contínuo. Por isso apresenta um registo que se apoia no fragmento e não tanto num continuum espacio/temporal.

As páginas ou as folhas de um diário gráfico são momentos, fragmentos roubados ao fio do tempo e congelados numa imagem. Estas colecções, mais ou menos extensas, convidam-nos à criação de sequências narrativas.

Vejam-se algumas frases de Pablo Picasso a propósito dos diários gráficos: (…) regardez ma vie, lisez mon journal à travers mon oeuvre, por exemplo, que sublinha o carácter auto-biográfico implícito no diário de um artista, em que o suporte se torna quase irrelevante ou pouco importante. Ou outra, título de uma publicação do artista precisamente sobre os seus diários: Je suis mon cahier em que suis, em língua francesa, tem o duplo sentido de “sou” e “sigo”, ou seja, traduzindo: “eu sou o meu caderno” e “eu sigo o meu caderno”.

Olhando para o passado através dos registos feitos nos diários gráficos, podemos, para além da nostalgia que tal poderá porventura despertar, verificar quanto a passagem do tempo nos moldou e mudou as ideias e o modo como as expressámos graficamente e lhes fomos mais ou menos sensíveis. Mas permite igualmente verificar constâncias e repetições, pequenas e grandes manias, obsessões que também nos definem e caracterizam enquanto artistas, identificando um estilo.

ESTE TRABALHO É FINANCIADO POR FUNDOS NACIONAIS ATRAVÉS DA FCT – FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA, I.P., NO ÂMBITO DO PROJETO “UIDB/04042/2020”