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Lígia Fernandes

Retratos de família 

Desde Março de 2020, com o despoletar da pandemia de COVID-19 em Portugal, foram encerrados a maioria dos espaços comunitários, entre eles o do centro de dia da Nossa Senhora dos Anjos, em Lisboa. Para muitos dos seus utentes as atividades do centro de dia eram os únicos momentos de interação social do seu quotidiano. O confinamento revelou-se especialmente difícil para a geração mais velha, que se viu remetida para situações de solidão extrema. Foi neste contexto que iniciei a minha residência artística com o LARGO residências. Em colaboração com o centro de dia, o LARGO lançou o desafio a diferentes artistas para combater o isolamento dos utentes através de práticas artísticas.

O projecto “retratos de família” fez parte dessa iniciativa. Foi o primeiro projecto que realizei depois do impacto da pandemia, e ficou documentado no documentário “O Centro em Sete Andamentos”, uma produção MOVEA e LARGO Residências. Foram várias semanas de recolha das imagens e histórias de vida das diferentes utentes do centro. A recolha consistia em visitas às suas casas e a uma conversa que decorria ao ritmo da viragem das páginas dos seus álbuns de família. Estórias de vida com muitas pausas e recomeços. As imagens e sons recolhidos servem como material para o desenvolvimento de desenhos  para uma exposição a preparar em 2021.

Ao longo das conversas fiquei especialmente impressionada com os temas femininos e pedi para entrevistar apenas mulheres. Ouvi histórias sobre trauma, abandono o resiliência, sobre a condição feminina durante a ditadura, a vida em Angola e Moçambique e o retorno a Portugal, os conceitos de liberdade e repressão, o amor, a perda e o medo, a (in)fidelidade, a sociedade com a suas classes e os seus papéis, os pais, os avós e os filhos, a herança e o legado. A promessa do desenho servia como chave para abrir a porta para todas estas histórias. Uma senhora cantou no vão da escada do seu prédio, outra mostrou pautas de música escrita para si, sem saber a quem as deixar como herança, outra segurou numa foto de um rapaz com quem nunca chegou a casar e disse: “esta foto não a fotografa, fica só para mim”, outra falou de viagens por África remetida ao seu pequeno sótão, outra vestiu-se a rigor para o nosso encontro e falou da infância passada no teatro Tivoli. Em três meses aprendi sobre história de uma forma como nunca o tinha feito: afetivamente, na primeira pessoa.  Quando iniciei os desenhos no meu estúdio, realizei-os com todas as histórias na memória. Uma pergunta que me acompanhou também foi:  que impacto tem o projecto artístico na vida destas mulheres entrevistadas ou no público que venha a conhecer este trabalho? Que questões e diálogos serão colocados? Que sentido, reconhecimento ou legado poderei ter acrescentado à vida das mulheres entrevistadas?

A pergunta que me tem acompanhado ao longo do meu percurso e em particular durante o último ano tem sido: de que forma o desenho nos ajuda a relacionar com o mundo e de que forma o mundo se relaciona com o desenho? No meu processo o desenho tem tido uma vertente etnográfica, que me permite recolher conhecimento, explorar, relacionar. Por outro tem um impacto, uma carga social que traz o diálogo, a participação e a coletividade ao seu desenvolvimento. Estas duas componentes: a etnográfica e a socialmente implicada são como dois lados da mesma moeda, dois acontecimentos que se impactuam mutuamente. Finalmente há um terceiro acontecimento, que é a experiência pessoal, a forma como me transformo e aprendo individualmente, que influenciará o projecto artístico que realizo.

É importante assim entender o desenho para além do objecto. Qual é o papel do desenho na sociedade? De que forma o desenho é um elemento relacional, agregador, transformador, educador e afectivo? Qual é o sentido que retiramos do desenho e que sentido este nos dá?

A história da arte e a arte contemporânea têm levantado muitas destas questões, com vários autores (Walter Benjamnin, Hal Foster, Claire Bishop, Pablo Helguera, Tânia Bruguera, entre outros) a debater as ideia de um sentido de base de “arte por um propósito”, uma proposta mais próxima entre as práticas artísticas e a participação social, outros campos de conhecimento, a investigação e a educação: uma abordagem transversal e multidisciplinar. Cabe-nos continuar a explorar o potencial e as possibilidades do desenho nestes diálogos.

Bibliografia

“O Centro em Sete Andamentos”

https://www.facebook.com/watch/?v=3394197793949213

BENJAMIN, Walter The Author as Producer [em linha] eds. Harvard: Harvard College, 1999 [Consultado a 19 de Janeiro de 2019] . Disponível na internet  https://monoskop.org/images/9/93/Benjamin_Walter_1934_1999_The_Author_as_Producer.pdf>

BISHOP, Claire “The social turn. Collaboration and its discontents”. Artforum, 2006

FOSTER, HAL – The return of the real: The artist as an Ethnographer. (eds.) Massachusets: The MIT Press, 1997. ISBN 0-262-56107-7

HELGUERA, Pablo, “Education for Socially Engaged Art: A Materials and Techniques Handbook”. New York, Jorge Pinto Books, 2011. ISBN: 9781934978597 1934978590 

Lígia Fernandes trabalha com artes visuais, territórios e comunidades. Através de práticas de pesquisa artística e etnográfica realiza projetos de pintura e desenho em torno da identidade e memória, assim como iniciativas participativas onde as artes visuais são ferramentas para a relação social, a exploração de temas da sociedade e empatia. Há, em todo o seu trabalho, a consciência do seu ponto de vista português. 

Página pessoal @ligiampfernandes

ESTE TRABALHO É FINANCIADO POR FUNDOS NACIONAIS ATRAVÉS DA FCT – FUNDAÇÃO PARA A CIÊNCIA E A TECNOLOGIA, I.P., NO ÂMBITO DO PROJETO “UIDB/04042/2020”