Desenhar com água
Nas duas últimas residências artísticas (Cultivamos Cultura e Ateneu do Catorze) em São Luís, Odemira, assim como em algumas viagens, comecei a usar a água de rios e barragens para diluir a tinta da China com que desenho.
Esta materialidade trazida para a representação e transformada em matéria do desenho ajuda-me no aprofundamento crescente que tenho vindo a sentir na minha relação com a paisagem e em particular com os ambientes aquosos. A minha compreensão visual da água é também possível através do contato com a pele, do seu cheiro ou ao analisar a sua transparência.
Por outro lado, a relação problemática entre papel e água assim como a experiência de desenhar perto e dentro de água, trazem uma tensão para o desenho que mantém presente a precaridade da experiência do desenho na paisagem.
O trabalho de campo é um exercício sobre a frugalidade. Alguns cadernos, tinta da China, pincéis orientais,
frascos e um banco, tudo transportável entre a mochila e um saco de asas. Para mim desenhar na paisagem
consiste no despojamento máximo, em levar comigo apenas o indispensável. Estar na paisagem continuadamente é
ser progressivamente a própria paisagem. Isto é possível através de um olhar atento, uma absoluta entrega ao
ato de observar e querer ver mais do que no desenho anterior.
O envolvimento físico é também fundamental. A
paisagem é áspera na maioria das vezes, de difícil acesso, quente e ventosa, povoada de insetos que interagem
comigo. Mas a paisagem é também um lugar mental alternativo ao ambiente citadino onde moro regularmente.
Está cheia de sons e cheiros que me ajudam a localizar-me e concentrar-me no ato de desenhar de um modo mais
intenso. As horas que passo sozinho são de profunda comunhão com os lugares, como se fosse mais um dos
animais que ali habita e se movimenta. Nas duas últimas residências artísticas que realizei em 2020, na
Cultivamos Cultura e Ateneu do Catorze, ambas em São Luís, Odemira, assim como em algumas viagens no norte
alentejano, comecei a usar a água de rios e barragens para diluir a tinta da China com que desenho.
As circunstâncias, como sempre, tiveram um papel importante uma vez que esta decisão foi tomada de improviso num dia em que as aguadas que tinha levado terminaram a meio de uma sessão de trabalho.
A experiência de desenhar perto e dentro de água permitiu o início de um entendimento dessa massa líquida. A minha compreensão visual da água é também possível por ter os pés dentro de água, estar nu dentro de água, sentir o ritmo do movimento da água, ouvir o som desse movimento. Essa interação permite encontrar um ritmo para o desenho, uma cadência para as marcas do pincel. Se no início da experiência com a paisagem a minha representação estava assente
sobretudo na linearidade, progressivamente as manchas começaram a ocorrer como solução parcial ou total dos
desenhos.
A utilização da componente líquida da paisagem permite o entendimento do desenho como um processo
holístico ao considerar o trabalho de campo como um exercício de adaptação ao tema. Representar a paisagem
com a sua própria matéria constitui uma metamorfose do desenho em recolha material dos lugares. O desenho
passa a ser simultaneamente um registo a partir da observação mas também um modo de transformar a paisagem em desenho.
Esta materialidade trazida para a representação permite interrogar a própria natureza do desenho e dos cadernos como possíveis prolongamentos da paisagem. Não estou interessado em impor o meu desenho a um lugar.
É importante que cada fragmento de paisagem me proponha um modo de desenhar específico, mesmo que as
diferenças entre os resultados das várias sessões de trabalho possam ser diminutas. Este entendimento, do
desenho como uma ação contaminada e transformada pelo tema, permite renovar todos os dias o meu olhar e o meu
interesse pelo desenho.
Quanto mais tempo estou num determinado lugar mais o meu desenho e a minha gramática
gráfica se modificam. A relação problemática entre papel e água mantém presente a precariedade da experiência
do desenho na paisagem. O papel reage fisicamente às aguadas, há contaminação de manchas de tinta entre as
folhas, estas arqueiam quando secam e os cadernos tornam-se mais volumosos.
Há um ponto de saturação que impõe uma espera entre camadas de tinta. Esta demora no fazer dos desenhos remete também para um espaço que é alheio ao tempo, onde apenas a intensidade dos contrastes lumínicos parece variar. O caráter atemporal da paisagem, o espaço que parece imutável e a que eu apenas acrescento pegadas, contamina o meu modo de
trabalhar, torna-me mais contemplativo, mais disponível para a transformação do meu ritmo de trabalho. O valor dos resultados destas sessões de desenho reside no seu caráter cumulativo.
Os cadernos que trago de cada viagem ou residência artística contêm descobertas que produzem inevitavelmente alterações evidentes no trabalho de ateliê durante os meses seguintes.
Bibliografia e outras referências
ELFVING, Taru, KOKKO, Irmeli e GIELEN, Pascal (eds.), 2019. Contemporary Artist Residencies, Reclaiming Time and Space. Amsterdam: Valiz. ISBN 978-94-92095-46-6
SOLNIT, Rebecca, 2002. Wanderlust: A History of Walking. London: Verso. ISBN 978-1-84467-558-6
GOOLEY, Tristan, 2016. How to Read Water, Clues & Patterns from Puddles to the Sea (reedição, 2017). London: Sceptre. ISBN 978-1-473-61522-9
Artistas chineses e japoneses:
Bada Shanren/Zhu Da (1626-1705),
Shitao (1642-1707), Ogata Kōrin (1658-1716),
Sengai (1750–1837)
Filmes para os tempos em que vivemos:
The Passenger (1975) Michelangelo Antonioni – um homem que assume a identidade de outro como fuga possível
Dans la Ville Blanche (1983) Alain Tanner – sobre estar no limbo
Le Trou (1960) do Jacques Becker – sobre a fuga de uma prisão
Rio Bravo (1959) Howard Hawks – sobre vencer um inimigo aparentemente superior
Jorge Leal nasceu em Lisboa em 1975, onde vive e trabalha. Licenciou-se em arquitetura na Universidade de Coimbra em 2000. Entre 2002 e 2004 realizou estudos de pintura e desenho no Ar.Co. em Lisboa.
Em 2017 concluiu o doutoramento em desenho com o título “Da Presença do Desenho na Pintura: A Linha Transformadora” na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Encontra-se a desenvolver na mesma faculdade um pós-doutoramento em desenho com o tema “A Presença da
Tinta da China e do Pincel Sino-Japonês no Desenho: Europa na Transição entre os Séculos XIX e XX”. Expõe regularmente desde 2005 em instituições e espaços privados. Está representado na coleção do MAAT, Fernando Figueiredo Ribeiro e coleções privadas (Portugal, Espanha, França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha).
Desde 2012, o seu trabalho está centrado na investigação prática e teórica sobre desenho, onde procura interrogar os seus elementos constituintes, assim como a integração da escrita no desenho. Desenvolve regularmente trabalho em contexto de residência artística onde procura desafiar-se em novos contextos físicos e culturais. O uso do diário gráfico é central na sua prática artística, facto comprovado pelos mais de 180 cadernos existentes no seu ateliê que regularmente são integrados nas exposições em que participa.