Bird on the wire
Quando estou a trabalhar existe um constante medir de forças.
Sinto que há um conflito interior e que se espelha de alguma forma naquilo que faço, sejam coisas mais simples e improvisadas, ou mesmo em projetos de maior envergadura.
No final do dia, sou sempre a minha maior adversária.
Não só no sentido de estarmos sempre a tentar superarmo-nos a nós mesmos, mas sobretudo porque … gosto de tirar partido dos meus instintos e impulsos, mas, ao mesmo tempo, acho que tenho uma tendência natural para tentar suprimi-los. Tentar controlá-los.
Há uma necessidade de controlo muito forte em mim com a qual estou sempre em conflito.
Quando comecei o mestrado em cinema, no segundo semestre propuseram-nos fazer um trabalho. Tínhamos de fazer um pequeno filme. Coisa de 5 minutos.
Era a cadeira de Montagem e a professora virou-se para nós e disse:
Façam qualquer coisa…
Façam qualquer coisa, a pior coisa que ela podia ter dito.
Não havia enunciado, não havia nenhuma premissa: simplesmente, façam um filme… e foi horrível.
Foi terrível porque eu nunca tinha feito um filme. Não sabia filmar, não sabia por onde começar. E não queria contar com pequenas experiências que tinha feito durante a licenciatura.
Umas semanas antes a minha mãe pediu-me que lhe ensinasse a utilizar o Photoshop. Ela tinha passado anos a trabalhar sem aquela ferramenta, mas eu convenci-a que era indispensável para o seu trabalho. Agora só me lembrava da ironia da nossa conversa, de toda aquela situação.
Lembro-me de lhe dizer coisas como:
E agora clicas aqui,
E agora arrastas isto para aqui.
São só 2 segundos.
Se carregares aqui o programa faz isto tudo por ti.
Não tens de ser tu a fazer
Vais ver que fazes isto tudo muito mais depressa.
Despachas isto tudo em 5 minutos.
Perdes muito menos tempo.
Não deixa de ser verdade… mas senti uma espécie de hipocrisia. Porque aquilo que eu lhe estava a tentar ensinar não ia melhorar a qualidade do trabalho dela.
Reparei que facilmente conseguia confundir agilidade com… preguiça. Acima de tudo, parecia que lhe estava a tentar ensinar como se livrar rapidamente do que estava a fazer. Uma coisa da qual ela sempre teve orgulho e que gostava muito de fazer.
Acabei por utilizar o exercício de montagem para explorar esta ideia. Não queria recontar esta história, queria ver como é que podia questionar esta sensação de contradição.
Agora reconheço que, no meu trabalho, geralmente opero através de comparações. Isto porque uso o desenho, a banda desenhada como forma de pensar, processar ideias, uma tentativa de expor um problema ou um conflito.
E neste caso, aquilo que me estava a fazer confusão era não saber qual a atitude a tomar. Até que ponto é que estamos a agilizar o nosso trabalho, e quando é começa a ser uma fuga do mesmo. Quis materializar o contraste que se estabeleceu entre a minha ética de trabalho, e os valores que eu parecia desprezar.
Quando terminei o filme… não parecia um filme meu. Melhor, não era de todo o tipo de filme que imaginaria que fosse alguma vez fazer. Resultou numa sequência de filmagens estáticas de móveis e eletrodomésticos incompatíveis entre si, à qual depois acrescentei a minha voz a ditar instruções de uso do Photoshop.
Sei que fiquei satisfeita, não por ser um filme incrível – tecnicamente, era muito questionável – mas porque me surpreendi a mim mesma. Apercebi-me que tinha canalizado toda a minha atenção para o processo criativo e acabei por me desprender do que resultaria no produto final. O filme em si, aquele que depois vi projetado com a minha turma na sala de aula, foi apenas uma consequência. Eu estava mais preocupada em resolver o jogo que criei durante o processo de montagem: como é que ligava aquelas imagens? Como é que iria estabelecer uma relação entre elas? De que forma é que a sequência lhes poderia dar sentido? Como é que intercalo isto tudo com o som, numa linha de tempo? Como é que as palavras podem contribuir ou alterar o contexto da imagem, e que impacto terão no ritmo ou na sequência?
Até agora, o meu processo criativo era muito concreto, muito transparente. Tinha uma história, ilustrava essa história. Estava habituada a ter uma imagem clara na minha cabeça do que queria fazer e onde tinha de chegar.
Nos últimos anos passei a encarar o desenho, a banda desenhada, não como objetivos, mas como ferramentas que utilizo para encarar e questionar acerca de problemas, desconstruir ideias. É uma linguagem. Ou um puzzle. A dose certa de imprevisibilidade acaba por me entusiasmar pelo caminho.
Agora dou por mim muitas vezes a experimentar, a impor desafios a mim mesma: como é que exploro esta ideia só com dois materiais, como é que resolvo uma sequência só com x números de vinhetas, como é que desconstruo este enigma só com imagens de flores, sei lá.
Sinto que só agora é que estou finalmente a começar, apesar do desenho fazer parte da minha vida mesmo antes de saber escrever, sempre foi uma coisa natural. Ao contrário do que eu achava, com os anos e com a prática não fica mais fácil, apenas se torna mais difícil de separar de tudo o resto.
Não deixa de ser um acto de fé.
No meio de toda a confusão, de todo o caos, continuo a procurar um sentido, uma razão, que se materializa numa composição, numa sequência, numa história. Isto está ligado a isto e por isso faz sentido, sem que haja uma prova concreta disso, é o que acredito.
E, para mim, é ainda mais difícil fazermos bem as coisas se não tivermos nada em que acreditar.
Joana Mosi (1994) é artista visual, autora e educadora. Licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes (UL), actualmente termina o mestrado em Cinema (IPL). Já publicou alguns livros de banda desenhada, alguns deles premiados, entre os quais a mini série autobiográfica Altemente (ComicHeart, 2016) e Nem Todos os Cactos têm Picos (2017, Polvo). Em 2020, foi incluída na antologia internacional Kus, com o projecto “Everything’s Gonna Be Okay”.
Nos últimos dois anos, tem dedicado grande parte da sua actividade a iniciativas e projectos relacionados com banda desenhada, educação e literacia. Colaborou com várias instituições, entre as quais o Plano Nacional de Leitura e os projectos internacionais ReadON e Comics for Education. Foi coordenadora do curso de Concept Art da ETIC, em Lisboa, e é a actual formadora de Banda Desenhada, na Nextart, também em Lisboa. Desde 2020 que colabora com The Animation Workshop, em Viborg (Dinamarca).