Ainda estamos a reequilibrar
O trabalho de um crítico, para além de descrever e classificar, de elucidar e contextualizar, analisar e interpretar, é oferecer um juízo de valor. Julgar. Mas julgar o objecto – o desenho, no caso presente – pelas regras que ele próprio institui. Como é que cada desenho, ao lançar linhas que criam um espaço contornado, delimitam, ocupam e depois ultrapassam esse espaço. A cada desenho, a cada gesto de desenho, temos de reaprender a ler e a ler melhor.
Na neuropsicologia, utiliza-se o termo “engrama” para falar de um “traço físico da memória”, por outras palavras, uma marca deixada no cérebro por uma qualquer memória. Não apenas a observação ou a experiência no nomento, mas a sua alocação e possibilidade de recuperação. Isto poderá recordar-nos imagens mecanicistas que foram sendo empregues ao longo dos séculos na cultura ocidental para falar da memória. Começou pela tabuinha de cera de Platão, passando pelo pano furado por agulhas de Descartes, o bloco mágico de Freud e finalmente as formas simbólicas que sobrevivem na cultura discutidas por Aby Warburg. Tal como Warburg, também Étienne-Jules Marey criou espaços de intimidade entre as ciências naturais e as disciplinas da expressão. E na segunda metade do século XIX ele melhorou o esfigmógrafo, um importante instrumento das ciências médicas que media a pressão arterial. Marey transformou-o num aparelho portátil, aplicando-lhe um dispositivo que “traduzia” as pulsações em traços gráficos no papel. Mas já existia um instrumento muito antigo capaz de transformar as paixões da experiência e da memória humanas em marcas gráficas. Chama-se a isso desenho.
O desenho pode ser entendido como uma representação.
Mas isso não é suficiente. Não é apenas uma questão de partilhar contornos e elementos físicos com um determinado objecto, em que este é traduzido por outros meios, as mais das vezes gráficos, e sobre uma superfície, e muitas vezes de forma mais ou menos perene.
O desenho pode ser entendido como uma interpretação. David Hockney afirma que “qualquer imagem (ele usa a palavra picture) é um registo de olhar para alguma coisa”.
Para haver interpretação, não há apenas intervenção do olhar, remetendo à cosa mentale de Leonardo, mas a participação do corpo em movimento, exercendo a sua força e poder sobre o material riscador contra uma superfície.
O desenho é uma operação, que liga aquilo que se vê (mesmo que pela imaginação somente) àquilo que se mostra. É um gesto. É menos importante o resultado do que o seu acto, o nexo que cria. Um profundo acto poiético, que etimologicamente quer dizer “fazer”.
Se entendermos que a mais estranha materialidade de todas é a do corpo humano, o desenho que a traduz herda essa estranheza.
Um desenho é ainda coisa sobre coisa, tem uma materialidade própria. Antes da representação, é material espraiado numa forma. Durante a sua função, manterá um grau de transparência de si mesmo, nas linhas e riscos, manchas e correcções, deslizes e desacertos. E depois da representação, manterá uma vaga impressão que fica também ela na memória. O desenho é traço mas deixa traços. Se se observar com atenção um desenho de uma coisa, passar-se-á a ver essa mesma coisa de um modo informado pelo desenho.
Pouco importa, pelo menos numa abordagem última, qual o material que se emprega – grafite, carvão, pastel, sanguínea, aguada, café – ou as categorias e papéis que o desenho pode assumir – forma de compreender ou de planear, modelo ou aide-mémoire, de dar forma à imaginação ou de capturar a realidade, de expressar uma opinião, uma resposta emocional, de estratificar uma cognição – ou até mesmo se se inclina mais para a abstracção ou para o naturalismo. Pedro A. H. Paixão chama-a “disciplina sem nome”. Pouco importa, igualmente, se pode ser entendido de uma forma restrita como pertencente a uma categoria chamada “arte” ou “pesquisa estética”, ou se se reveste de fins mais comuns.
O desenho da banda desenhada ganha uma natureza própria. Está sempre em desequilíbrio, vertendo a sua ontologia no próximo, herdando-a do anterior, espraiando-a em todos os outros que lhe estiverem associados. Não está nunca sozinho, isolado, mas faz parte de uma cadeia que não é a do ciclo ou da série, mas da sequência, isto é, obrigando a um movimento, a que damos o nome de leitura. São um ponto num tecido maior a que damos o nome de texto e pode ter a forma de uma tira, uma página, uma revista, um livro, uma colecção de álbuns, ou ir até mais além. É um desenho que obriga a uma super-memória. Identificar o gesto mínimo que a coloca em movimento não é nunca uma tarefa clara e final, mas estas cadeias são um início.
Pedro Moura (Lisboa, 1973) tem-se dedicado à banda desenhada nas últimas décadas, sobretudo como crítico, nos blogs lerbd.blogspot (em português) e yellowfastcrumble.wordpress (inglês), mas também noutros papéis, desde documentarista (Verbd, RTP2, 2007), docente (em várias escolas, presentemente Ar.Co, ESAD, Lusófona), a argumentista (Variações sobre o Anjo da História, com Ilan Manouach, Os Regressos, com Marta Teives, a secção de bd da Cais, e antologias TLS Series, Quireward, Umbra), tendo vários projectos em produção.
É também académico, doutorando-se em Literatura em Lisboa e Leuven com um trabalho sobre banda desenhada contemporânea portuguesa e trauma, e escreveu vários artigos publicados nacional e internacionalmente. Presentemente, nesta área, prepara projectos de livros de natureza académica sobre banda desenhada. Enquanto comissário, organizou várias exposições, destacando-se “Divide et Impera”, sobre bd experimental internacional (2007/2009, Amadora/Charlotesville), “Tinta nos Nervos” (Museu Colecção Berardo, 2011), “SemConsenso: Banda desenhada, ilustração e política” (Museu do Neo-Realismo, 2015) entre outras criadas no âmbito do FIBDA, Bedeteca da Amadora, outras instituições e, mais recentemente, na livraria-galeria Tinta nos Nervos, em Lisboa, que co-fundou, e que é um espaço dedicado exclusivamente às artes múltiplas do desenho.
Para além desta área, trabalha igualmente territórios contíguos, como a ilustração, a animação, a poesia visual, as narrativas visuais, os múltiplos, os livros de artista, artes visuais em geral, explorando sempre as fronteiras porosas entre várias produções associadas ao desenho. É membro-fundador da Oficina do Cego, do podcast “3 Graus de Carequice”, e argumentista de filmes curtos, inclusive de animação, espectáculos de dança, e ópera.