Perspectivas Esféricas e Anamorfoses Imersivas
Vou falar-vos de perspectivas esféricas, e de como o desenho se tornou para mim um problema de investigação em matemática, sem nunca deixar de ser desenho.
Comecemos por expor um espécimen: abaixo vemos uma perspectiva esférica equirectangular.
Fig. 1: Desenho equirectangular. Lápis sobre papel, formato A4.
É um desenho em grafite sobre papel, tamanho A4. Fi-lo à mão, por observação, sem usar computadores; no entanto o desenho gera num computador um panorama imersivo – posso olhar em volta, como se estivesse de regresso ao local onde foi feito. Experimentem pressionar e arrastar com o rato, na versão abaixo:
Esta imagem é um objecto híbrido que habita o intervalo entre o desenho físico e a visualização digital imersiva. O desenho contém toda a informação necessária para criar uma anamorfose esférica, isto é, para cobrir uma esfera de tal forma que os pontos do desenho se alinham radialmente com os pontos originais no espaço. Isto cria um objecto mimético, que gera a mesma sensação visual que o ambiente real (dentro de certo limites) para um observador no centro da esfera.
Isto poderia ser feito fisicamente, ao espírito dos panoramas de Robert Barker ou do Georama de Delangard , ou dos tectos de igreja de Pozzo, pintando a superfície interior de uma estrutura esférica de grandes dimensões; o computador faz o mesmo, mas mais economicamente – cobre uma esfera virtual com o desenho e a coloca-nos no centro.
Fig. 2: o desenho equirectangular e a anamorfose gerada por este sobre a esfera. Agradecimentos ao meu estudante Lucas Olivero, que fez a cobertura da esfera de papel a partir do meu desenho.
O importante aqui é que o desenho é por um lado uma construção precisa – tem que sê-lo para que as linhas pareçam rectas no panorama imersivo – mas é também realmente um desenho; os cálculos subjacentes estão reduzidos a um processo físico, que requerendo cuidado e conhecimento é ainda assim um processo de desenho manual – e mesmo um “sketch”. Fi-lo quando visitei o ISEL para dar uma palestra (precisamente sobre perspectivas esféricas) e, tendo chegado demasiado cedo, resolvi desenhar o local. Em minutos medi os ângulos relevantes com as mãos, usando “o truque dos astrónomos” (as costas da mão, com o braço estendido subtendem aproximadamente 10 graus no campo de visão), e tomei nota de padrões repetidos do cenário. Os detalhes acabei em casa.
Nos desenhos preliminares, abaixo, vemos as marcas típicas de uma construção em perspectiva, com linhas paralelas que convergem no infinito; no entanto essas linhas são curvas, e cada uma delas tem dois pontos de fuga.
Essas linhas e pontos de fuga são usados num processo de multiplicação de perspectiva que permitiu obter todos os arcos a partir da medição do mais próximo, por um processo de desenho iterativo.
Fig. 3: Multiplicação de perspectiva. Apenas o arco central é medido, e os outros são obtidos por um processo iterativo que obtém cada arco a partir do anterior.
Encontrei-me com estas perspectivas há uns anos, quando dividia o meu tempo entre a investigação em matemática e o desenho. Investigava singularidades de curvas algo abstractas, mas no resto do tempo fazia trabalhos de ilustração ocasionais e desenhava diariamente e compulsivamente o que via à minha volta, especialmente as pessoas. Interessei-me pelo desenho de arquitectura ao sair para desenhar com os Urban Sketchers. Apanhei com eles a mania das grandezas…angulares. Queria apanhar tudo o que via ao meu redor num mesmo desenho. Foi aqui que a matemática e o desenho se encontraram.
Estudei o tratado de Barre e Flocon, que definiu a primeira perspectiva esférica nos anos 60 (Barre & Flocon, 1968). Esta perspectiva, que tem o aspecto de uma projecção em “olho de peixe”, é uma verdadeira perspectiva, Isto é, um método sistemático para desenhar todas as linhas e pontos de fuga, sem usar computadores. No entanto, apesar do nome, não é esférica, mas hemisférica: apanha só 180 graus em torno de um eixo. Leccionei essa perspectiva durante uns anos, num curso livre de “Arte e matemática”, na Universidade Aberta. O público era variado: artistas, ilustradores, urban sketchers, professores de educação visual. O curso centrava-se na anamorfose, e nas perspectivas curvilíneas. Esse curso a seu tempo deu origem ao que hoje lecciono no doutoramento em Média Arte Digital (Univ. Aberta/Algarve) sobre desenho imersivo, que usa a prática do desenho como ferramenta para abrir as “caixas negras” dos métodos da computação gráfica. Ocorreu-me que a própria perspectiva era uma tecnologia opaca em certo sentido, e que havia algo a fazer para compreender melhor o conceito de perspectiva curvilínea/esférica.
Vários autores haviam tentado estender a perspectiva de Barre e Flocon do hemisfério à esfera completa. Mas ao contrario de Barre e Flocon, que propuseram um método sistemático de desenho manual para obter todas as linhas e pontos de fuga, o que essas generalizações propunham eram procedimentos ad-hoc, incompletos, ou que dependiam de cálculos de computador. Em resumo o problema era este:
A primeira perspectiva esferica não era esférica, e as seguintes não eram perspectivas.
Dediquei-me ao problema e acabei por resolvê-lo. Publiquei a solução num preprint em 2015, que estendia a fisheye (azimutal quidistante) de Barre e Flocon aos 360 graus; mas quando publiquei o artigo final (Araújo, 2018b), o seu âmbito estendera-se. Apercebi-me que a minha solução tinha implícito um programa geral para resolver perspectivas esféricas gerais, que implicava uma reformulação do próprio conceito de perspectiva, em que, ao contrário do habitual, a anamorfose seria o conceito central e a perpectiva o derivado.
Tudo decorre do principio da oclusão radial, que que podemos abstrair da Óptica de Euclides (Araújo, 2020):
Para um observador, dois pontos sobre um mesmo raio com origem no olho, são indistinguíveis.
Isto cria uma correspondência biunívoca entre o mundo visível e os pontos de uma esfera centrada no observador – a esfera visual. Esta correspondência gera uma mimese compacta no sentido matemático do termo. Vejamos: em perspectiva queremos desenhar linhas; mas uma linha é infinita! Eu não posso realmente desenhá-la no seu todo. Ora a linha projectada radialmente sobre a esfera é um meridiano da esfera (metade de uma geodésica). Este meridiano é uma anamorfose da linha original – é-lhe visualmente idêntico – mas é limitado no espaço! Já podemos então desenhá-lo? Ainda não: faltam-lhe dois pontos limite, diametralmente opostos, nos seus extremos…e eu não sei desenhar um arco sem desenhar os seus extremos! Se juntarmos esses pontos ao meridiano obtemos um conjunto que não só é limitado mas é também fechado (i.e., contém os seus pontos-limite). A isto os matemáticos chamam um compacto. Do meu ponto de vista os compactos são a abstração matemática dos objectos que de facto podemos desenhar; e o propósito da anamorfose é encontrar esses simulacros compactos dos objectos tridimensionais. Os pontos limites que tivemos que acrescentar para compactificar os meridianos são – como se adivinha – os pontos de fuga da linha. Ao contrario da perspectiva clássica, aqui é tudo perfeitamente simétrico: existem exactamente dois pontos de fuga por cada linha. Estes pontos de fuga são encontros de paralelas, tal como em perspectiva clássica. Em anamorfose esférica um cubo terá seis pontos de fuga, ordenados em três pares de pontos antípodas.
Fig. 4 – Um cubo 3D, o seu anamorfo esférico, e os seus seis pontos de fuga.
Esta anamorfose esférica, mimética e maximamente simétrica, tem só um defeito: nós preferimos desenhar em planos. A perspectiva esférica é precisamente a planificação desta anamorfose. É uma carta geográfica da esfera visual. Ora sabemos da cartografia que há infintas planificações da esfera; cada uma delas resulta numa perspectiva esférica diferente.
Fig. 5 – Quatro passos do desenho de observação da cabine de um barco em perspectiva esférica Azimutal equidistante (“360-fisheye”). Lápis sobre papel.
Cada uma dessas perspectivas obriga a uma estratégia específica. É preciso saber desenhar à mão as formas e posições das linhas planificadas. O meu trabalho consistiu em encontrar estratégias para fazê-lo, através da classificação das geodésicas de uma perspectiva, dos seus pontos de fuga e dos grupos de simetria que os preservam.
Essas simetrias traduzem-se em processos mecânicos de grelhas dinâmicas que permitem desenhar todas as geodésicas de forma eficiente.
Dessa forma resolvi três perspectivas esféricas: a azimutal equidistante (ou “olho-de-peixe”) (Araújo, 2018b), a equirectangular (Araújo, 2018a), e a cúbica (Araújo et al., 2020), esta ultima já em colaboração. Em dois trabalhos de referência para o Springer Handbook of the Mathematics of the Arts and Sciences tentei finalmente resumir os fundamentos e as definições básicas de uma eventual tipologia das anamorfoses imersivas e perspectivas esféricas (Araújo, 2020, 2021). É um trabalho que ainda precisa de mais algumas iterações, até porque há mais perspectivas por resolver.
A minha equipa explora agora as aplicações destas perspectivas. Os contornos exactos dessa aplicações são ainda difusos, mas vemos interesse crescente em arquitectura, no design, na documentação visual do património histórico (Rossi et al., 2021), e claro, nas formas mais livres de expressão artística, como novo material híbrido com as suas características e estéticas específicas. Se as aplicações ainda são difusas, o interesse é crescente: Somos chamados a dar formação a arquitectos, designers, e artistas, em universidades de vários países, bem como a equipas interessadas em trabalho comercial. Também no ensino básico, testámos o conceito de anamorfose imersiva como base e motivação para um ensino integrado da(s) perspectiva(s) e geometria descritiva. Este estudo está para sair, na tese de doutoramento do meu estudante Manuel Flores; os resultados preliminares são prometedores.
Embora o meu foco seja o desenho manual desenvolvo também software para desenho esférico digital. Programei um software de desenho esférico chamado Eq A Sketch 360 (Araújo, 2019), originalmente apenas um “serious toy” para me ajudar a ensinar os métodos manuais de desenho esférico equirectangular em aulas e workshops online; mas o software tem vontade própria, e este acabou por divergir para um uso mais geral; alguns dos meus algoritmos acabaram por ser adoptados por uma app da Microsoft, a Sketch 360, numa colaboração recente com Michael Scherotter. Agora o desenvolvimento de software é uma das minhas prioridades. No entanto o propósito é centrado no desenho manual: pretendo influenciar as ferramentas deste campo emergente no sentido de criar tecnologias híbridas que estimulem e alarguem o âmbito do desenho manual em vez de tentarem substituir-se a este. Porque o desenho é não só um meio de expressão, mas também uma forma particular e insubstituível de pensamento.
Referências:
Araújo, A. B. (2018a). Drawing equirectangular VR panoramas with ruler, compass, and protractor. Journal of Science and Technology of the Arts, 10(1), 2–15. https://doi.org/10.7559/citarj.v10i1.471
Araújo, A. B. (2018b). Ruler, compass, and nail: Constructing a total spherical perspective. Journal of Mathematics and the Arts, 12(2–3), 144–169. https://doi.org/10.1080/17513472.2018.1469378
Araújo, A. B. (2020). Anamorphosis Reformed: From Optical Illusions to Immersive Perspectives. In B. Sriraman (Ed.), Handbook of the Mathematics of the Arts and Sciences (pp. 1–68). Springer International Publishing. https://doi.org/10.1007/978-3-319-70658-0_101-1
Araújo, A. B. (2021). Spherical Perspective. In B. Sriraman (Ed.), Handbook of the Mathematics of the Arts and Sciences (pp. 1–61). Springer International Publishing. https://doi.org/10.1007/978-3-319-70658-0_100-1
Araújo, A. B. (2019). Eq A Sketch 360, a Serious Toy for Drawing Equirectangular Spherical Perspectives. Proceedings of the 9th International Conference on Digital and Interactive Arts, 1–8. https://doi.org/10.1145/3359852.3359893
Araújo, A. B., Olivero, L. F., & Rossi, A. (2020). A Descriptive Geometry Construction of VR panoramas in Cubical Spherical Perspective. Diségno, 6, 35–46. https://doi.org/10.26375/disegno.6.2020.06
Barre, A., & Flocon, A. (1968). La perspective curviligne. Flammarion.
Rossi, A., Olivero, L. F., & Araújo, A. (2021). For Representation, a New Reality: Hybrid Immersive Models. In Faces of Geometry (2nd ed., Vol. 172, pp. 263–275). Springer International Publishing. https://doi.org/10.1007/978-3-030-63702-6_20
Nota Biográfica:
António Bandeira Araújo é matemático e ilustrador. É licenciado em Física, mestre em Geometria, e doutorado em Matemática pela Universidade de Lisboa. Teve formação em desenho e pintura, ilustração científica (com Pedro Salgado, no IAO), e anatomia artística (FBAUL). É professor auxiliar na Universidade Aberta (UAb), e coordenador do pólo UAb do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC). É editor da secção de Arte e Matemática da European Mathematical Society Magazine, e ilustrador da mesma revista. A sua investigação centra-se nas conexões entre a Matemática e as Artes Visuais.
É autor ou co-autor de perto de quarenta publicações com peer-review.
As suas principais publicações redefiniram o campo das anamorfoses imersivas e das perspectiva esféricas, com aplicações emergentes em campos como a Arquitetura e o Design. Este trabalho pode ser visto como uma conciliação da óptica de Euclides com a perspectiva, à luz da matemática moderna e da prática do desenho. A equipa que coordena actualmente dá formação nestes novos métodos de perspectiva imersiva para audiências variadas tanto na academia como na indústria, em locais tão diversos como as Universidades de Saint Joseph (Macau), Aalto (Finlândia), Pará (Brasil), e Caserta (Itália). Colaborou como ilustrador ou como consultor técnico em métodos anamórficos para diversos projectos artísticos e comerciais, entre eles um recente projecto anamórfico da Playstation PT. Fez várias exposições individuais e colectivas, e colaborações em instalações multimédia; foi programador principal do filme interactivo Cadavre Exquis, realizado por Bruno Silva, e colaborou numa instalação multimédia com Hanspeter Ammann, exibida em simultâneo em Faro e Bangkok, como parte do projecto internacional Cultural Adventures. Publicou trabalho de ilustração em revistas e livros, com destaque para as ilustrações aos livros do poeta Landeg White (Translating Camões, Letters from Portugal). No campo da programação gráfica, é autor de várias apps que implementam os seus métodos de desenho em perspectiva esférica, entre eles o programa de desenho esférico Eq A Sketch 360, cujos algoritmos foram adoptados pela app Sketch 360 da Microsoft numa colaboração recente. O seu trabalho teórico e de programação é informado pela sua prática artística, e aponta a tecnologias que estimulem, em vez de substituir, a prática do desenho manual enquanto forma de pensamento.
antonio.araujo@uab.pt