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Roque Gameiro

Entrámos no Atelier de Roque Gameiro; sentado em frente do seu estirador aí está o nosso homem: paleta na mão esquerda, pincel de fraco calibre (de pêlo de marta), na mão direita. É este um dos seus ambientes de trabalho – a sua casa. Chamou-nos a atenção a quase inexistência de pincéis de grande calibre, como se lhe bastassem para tudo os pequenos pincéis de retocador- cromista. Prefere as tintas em bisnaga às de pastilha (pelo menos nos trabalhos em atelier), maioritariamente de origem inglesa (Winsor & Newton) assim como os papéis (Whatman) em relação às francesas (Lefranc) e aos papéis franceses (Canson). Reparámos que o seu atelier está cheio do que hoje se chamariam “gadgets”, destinados a facilitar o trabalho. Vimos uma caixa para pintar no exterior, feita por ele, comportando paleta, pincéis, tintas, bloco de papel, trapos, cantil e vasilha para a água, perfeitamente arrumados.

Nasceu em Minde, em 1864, onde iniciou os primeiros estudos; era um miúdo que só queria fazer bonecos. Com 10 anos foi enviado pelos seus pais para Lisboa, a fim de “estudar e, ao mesmo tempo, trabalhar nas oficinas gráficas e editorial do seu irmão Justino. A sua habilidade e hábitos de trabalho permitiram-lhe ganhar experiências e conhecimentos na arte de ilustrar e, aos poucos, foi avançando nessa via, primeiro em trabalhos secundários e depois, autorizado e encorajado para executar ilustrações como autor. A proximidade das técnicas da impressão “cromista” manual, litográfica, com a aguarela, conduziu-o naturalmente a enveredar por esta. Em 1884, foi para Leipzig, estadia com consequências importantes na sua formação. O ambiente do Romantismo tardio alemão despertou-o para uma valorização das culturas tradicionais, por oposição ao cosmopolitismo de influência francesa que dominava o meio artístico em Portugal. A busca de uma autenticidade nacional, e a procura de uma compreensão meditativa da Natureza, perante a qual se colocava numa posição de humildade e de busca de identificação levaram-no a fugir da produção artística da “moda”.

Os temas populares / etnográficos são parte significativa do legado do artista. Esta realidade reflecte o gosto de uma época, marcada por um processo de “construção da nação” que, não tendo começado nesta fase, assume neste período grande fulgor como a produção e divulgação intensa de imagens, narrativas e referências que definiram o que foi ser Português no século XX, comprovam. Se a execução recorrente desta tipologia de trabalhos, a maioria deles por encomenda, reflete uma época, traduz, ao mesmo tempo, o gosto do artista pela ilustração.

Numa carta que escreveu ao irmão Justino, diz-lhe que o desenho é a base de qualquer processo de ilustração. Vimos no seu atelier desenhos esquemáticos e de detalhe, vimos o desenho como ferramenta de estudo dos elementos da composição (estudos de: fardas, embarcações, e da cenografia de “As pupilas do senhor Reitor”) e da cor. Em muitas aguarelas acabadas estas desenvolvem-se sobre o desenho, mas também vimos desenhos que são estudos prévios às aguarelas.

Ilustrar exigiu também, da parte do pintor, a eleição de um método de trabalho muito rigoroso: do desenho à vista, dos esboços em atelier, passando por ajustes de último instante, RG submete cada desenho ao crivo rigoroso de um caminho feito de etapas, até à ilustração final.  O artista recolhe informações no terreno, tanto ao nível do enredo como da composição das paisagens. No atelier, estrutura a cena, define cores, legenda no próprio desenho detalhes relativos a cenários, objectos, bem como uma pré-seleção de cores a utilizar. Todo este processo plasma de uma forma concreta a herança milimétrica do desenhador litógrafo que RG também é. A formação superior recebida em termos académicos permitiu-lhe dominar as noções de perspectiva, proporcionalidade, definir pontos de fuga, linhas de força, escolher enquadramentos e, acima de tudo, gerir a economia de cada trabalho, não deixando “espaços por preencher”, equilibrando a dinâmica de cada cena apresentada.

Depois desta visita que foi um recuo no tempo, percebemos melhor, hoje, em 2021 o Homem e o aguarelista. 

Quando analisamos a obra de Roque Gameiro, a sua produção de teor histórico, os seus trabalhos de índole republicana onde o herói povo se manifesta, quando verificamos que a sua arte não se filia em nenhuma escola, moda ou estética impostas, sendo o resultado genuíno de alguém que definiu com clareza e autonomia o seu caminho, quando descobrimos que Roque Gameiro pai de família, artista e cidadão educou os filhos para a liberdade numa época onde tal realidade era tão rara, poderemos afirmar, quiçá,  que a independência foi um valor de actuação transversal na vida do artista. Esta perspectiva ajuda-nos a compreender o trajecto singular da vida e obra do artista de referência na aguarela em Portugal.

Morreu em Lisboa, em 1935. A sua figura ficou muito marcada pelas suas origens, formação e convicções. O fundo tradicionalista das suas convicções mostra-se nos “mottos” “Honra teus Avós” e “Pátria, Família, Arte”

O Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro (CAORG) é uma instituição sem fins lucrativos que tutela o Museu de Aguarela Roque Gameiro (MARG), situado em Minde, que se assume-se como museu temático dedicado à divulgação da técnica da aguarela e da obra de Roque Gameiro. Inaugurado em 2009, é o único museu do país cujo espólio é constituído unicamente por desenhos, aguarelas e um fundo arquivístico pessoal de Alfredo Roque Gameiro. A casa que lhe é dedicada integra ainda espaços técnicos e expositivos dedicados às diversas práticas artísticas (desenho, aguarela, outras). 

O MARG é tutelado e dirigido pelo CAORG- O Museu afirma-se como paradigma de transformação social fundamentada no reforço local das identidades e cultura e distingue-se, sobretudo pela acção de mediação comunitária reflectida numa programação diversificada que traduz o conhecimento da comunidade a que se dirige e nas inúmeras parcerias desenvolvidas a nível local.

Biografia

Alfredo Roque Gameiro nasceu em Minde, em 1864 e morreu em Lisboa, em 1935. Nasceu num meio humilde, provinciano mas honrado e cedo mostrou a vontade e a capacidade de procurar outros horizontes para a sua vida. Essas qualidades levaram-no a procurar uma vida ligada ao desenho e às artes gráficas, beneficiando de algum apoio familiar e tornando-se praticante do ofício de desenhador litógrafo.

Aí, porém, revelou capacidades e interesses para “além” do simples ofício gráfico e atraiu as atenções do meio artístico desse tempo de modo a merecer receber uma bolsa de estudo, para actualizar e ensinar a técnica da Litografia, então ainda recente em Portugal.

O seu contacto com ilustradores e desenhadores que confiaram a Roque Gameiro os originais a editar ou publicar para, como desenhador litógrafo os passar à pedra litográfica, levou-o a pertencer ao núcleo de amadores que se reunia na Sociedade Nacional de Belas Artes e, aí terá tido ocasião de conhecer Rafael Bordalo Pinheiro e outros ilustradores e pintores das várias tendências e formações, que por lá se encontravam, além de escritores, poetas e outras figuras da cultura.

A técnica do “colorista litógrafo” está bem longe da dominante pintura “a óleo” e Roque Gameiro, naturalmente, interessou-se pela então pouco apreciada e pouco desenvolvida “aguarela” cuja prática em Portugal não ia muito mais longe do que as lições do espanhol Casanova, à Rainha e a outras senhoras amadoras.

Roque Gameiro, no entanto, percebeu o valor da aguarela como veículo de expressão artística, quer no domínio da paisagem, como Russel Flint, que no domínio da ilustração como por exemplo com Arthur Rackham que, entre outros, o influenciaram. A paisagem, o estudo das figuras populares e a ilustração de temas históricos tornaram-se, assim, os seus domínios naturais de trabalho. Uma certa reputação que já ia adquirindo, permitiu-lhe ganhar conhecimentos sobre as formas que então tomava a técnica da Litografia.

Na Alemanha (de que RG não gostou …) adquiriu e reforçou hábitos de disciplina, de seriedade, de gosto pelas actividades de exterior e de observação da Natureza, que o acompanharam toda a vida.

Na obra de Roque Gameiro reside uma atitude de humildade e de veneração perante a Criação, que transparece nos mais pequenos pormenores, na ternura com que qualquer pedra, qualquer árvore, qualquer reflexo na água é tratado, como que identificando-se com ele. É essa força que nasce da humildade e do respeito pelo objecto, e maximamente quando o objecto de contemplação é uma pessoa, que faz com que nos seus retratos se atinjam alguns dos momentos mais altos da pintura portuguesa. Origens, formação e convicções reflectiram-se numa carreira nacional e internacional, largamente premiada.