O diário gráfico e o caderno público
Esta pequena comunicação está intimamente relacionada com um artigo publicado no Volume 1 da série “Nós e os Cadernos”(Cruz, 2016). Um evento onde autores se reuniram para desenhar e para debater em mesa redonda questões relacionadas com os Diários Gráficos e a actividade
do desenho de observação.
Falo, essencialmente, do percurso que me levou a iniciar a minha investigação em torno deste género e do seu posicionamento (e funções) no âmbito da esfera privada e pública. O Diário Gráfico é um artefacto engraçado. É publicado aquilo que não é um “diário” mas como se fosse um “diário”. Não há mal nenhum nisso. É só uma coisa engraçada. Mas deixem-me voltar atrás para que esta afirmação não seja mal entendida. O Prof. Moura Pinheiro, de cenografia, na ACE (Academia Contemporânea do Espetáculo – Porto), disse-nos (a nós estudantes) para transportarmos sempre um pequeno caderno.
Seria um espaço onde poderíamos tirar notas, fazer pequenos esboços, apontar e desenvolver ideias, colar coisas, entre outras coisas. Não era para mostrar a ninguém. Era sim, um espaço privado, uma espécie de diário. Chamou-lhe livro de Bordo. Desde essa altura (por volta de 1998) que mantenho diários
gráficos. Na altura, o acesso à internet era uma coisa complicada. Tínhamos que ir a ciber-cafés e era caro.
Mas sempre que tinha oportunidade para isso,
pesquisava sites de artistas. Curiosamente não eram os seus trabalhos finais que me interessavam mais, mas sim as secções de “esboços”. Melhor ainda quando alguns mostravam os seus diários! O meu primeiro interesse de investigação começava aqui. Esta coisa de mostrar os diários. Na grande maioria dos casos percebia o intuito com que o faziam. Mostravam o processo criativo, o caminho até chegar a uma peça final.
Durante este tempo, também eu ia publicando
algumas páginas dos meus diários. Mas, com uma diferença. Não tinha interesse em mostrar o processo mas sim as páginas por si só. Sempre gostei de as ver e raramente (infelizmente) via artistas a fazer o mesmo.
Claro que me questionava que interesse é que aquilo tinha para as outras pessoas. E por isso, estas publicações eram coisas que ia colocando na internet mas que, de vez
em quando, decidia simplesmente retirar tudo porque achava que ninguém queria saber daquilo para nada. Eram páginas exploratórias com coisas que não faziam
sentido para ninguém excepto para mim. Mais tarde, já enquanto professor na Universidade da Maia, reparei num livro à venda na FNAC do Eduardo Salavisa
(2008) intitulado “Diários de Viagem”. Este livro despertou novamente este antigo interesse. Achei curioso uma compilação de autores que publicam as páginas dos seus cadernos. Na minha cabeça a questão já tinha sido resolvida há bastante tempo.
Publicar o diário gráfico não faz sentido pois não há interesse nenhum nisso para o leitor. Ao folhear o livro do Eduardo reparei que a páginas destes diários publicados eram desenhos “acabados”. Achei curioso. Comprei o livro para poder ver tudo aquilo com mais calma em casa. Fiquei tão interessado neste livro e nas comunidades que desenham em cadernos e publicam os seus desenhos, que decidi, na altura, dedicar toda a minha investigação de mestrado a este assunto. (Cruz, 2012) A questão que colocava era: “Como é que um objecto que é um diário privado e íntimo aparece no espaço público? Com que função? Porquê?” Até hoje, cheguei a muitas conclusões. Percebi as estratégias que os autores usam para manter o caráter privado e íntimo dos seus diários apesar de publicarem os suas páginas, percebi que se calhar deveríamos chamar cadernos de desenhos e não diários gráficos a estas publicações, percebi o interesse das industrias culturais nestas publicações precisamente por causa de toda esta aura da intimidade e da privacidade, percebi que estes cadernos podem ser situados num eixo de tensão entre a exploração e a exposição, percebi que todos estes registos publicados têm um valor documental associados, entre outras coisas.
Hoje continuo a usar a designação “Diário Gráfico” nas publicações que faço por uma questão de normalização. Na verdade, essencialmente, publico apenas os desenhos de observação. As páginas privadas e íntimas ficam lá, no interior do caderno. Não serei o único e há estratégias muito curiosas que diversos autores adoptam para manter esta separação entre o privado e o público. Não sei muito bem porque é que desenho em cadernos. Gosto de desenhar e, transportar um pequeno caderno para o fazer, parece-me uma excelente ideia.
Muitas vezes, não é o objecto que me interessa mas sim a expressão de uma linha, o contraste entre duas cores, a gestão do espaço positivo e negativo, etc.
Enfim, confesso que muitas vezes, aquilo que estou a desenhar é apenas um pretexto para explorar uma determinada expressão gráfica ou estratégia visual. Outras vezes, não. Quero registar as coisas numa atitude documental sem a pretensão de estar a fazer um documentário. Como um turista que chega a um local
e vai apontando a câmera fotográfica para as coisas à sua volta. Relaxa-me. Dá-me um propósito. Permite-me conectar com a realidade. Claro que o meu olhar não é um olhar inocente e aleatório. Aquilo que escolho e que rejeito ver será, no limite, uma escolha feita de acordo com uma série de fatores como as
minhas vivências pessoais, os meus interesses presentes, as pessoas que me rodeiam, o espaço em que me encontro, entre outros.
Acredito que no limite não é possível identificarmos o porquê de olharmos para algo pois haverá imensos fatores que entram em jogo, que se mantêm profundamente enraizados longe da
nossa memória e consciência. Bem, voltando ao Diário Gráfico Um recurso semiótica cheio de potenciais semióticos. Alguns destes podem afastá-lo mais da sua natureza de “diário”. Outros, nem por isso.
Estes desenhos, publicados, perderam imediatamente toda a aura da privacidade e intimidade no momento em que começaram a ser feitos. Ou melhor, esta aura poderá estar lá, mas de uma forma simulada. Não há mal nenhum nisso, pois não há mal nenhum em publicarmos coisas que fazemos. Mas estes desenhos serão uma outra coisa. E não um desenho privado e íntimo embora possa parecer que detém estas características. É realmente importante que tenha esta aura? Penso que, depende… De todas as publicações de diários gráficos que se vão fazendo, aquelas que são realmente privadas e intimas, serão, eventualmente, algo como esta: The Diary Of Frida Kahlo: An Intimate Self-Portrait (Lowe, 2006) Alguém morreu e alguém decidiu publicar os seus diários.
Não chegou até nós pelas mãos da autora. Haveria muita coisa a dizer sobre esta atitude de publicar um diário de alguém que já morreu. Mas vou deixar isso para uma outra conversa.
BIBLIOGRAFIA
Cruz, Tiago (2012), Do Registo Privado à Esfera Pública: O Diário Gráfico enquanto meio de expressão e comunicação visual, Tese de Mestrado em Comunicação na Era Digital, pela Universidade da Maia (ISMAI), Maia, Portugal
Cruz, Tiago. (2016). O Diário Gráfico e o Caderno Público, in Cruz, Tiago
(Ed). (2018) Nós e os Cadernos vol.1 (pp. 13-18), Universidade do Algarve:
Edições CIAC Lowe, Sarah (2006), The Diary Of Frida Kahlo: An Intimate
Self-Portrait, US:Abrams
Salavisa, Eduardo (2008), Diários de Viagem, Lisboa: Quimera
Biografia
Tiago Cruz – Arte, Design, Docência e Investigação.
Leciona na Universidade da Maia e é investigador do CIAC (Centro de Investigação em Artes e Comunicação – Universidade do Algarve). É mestre em Comunicação Multimedia, pela Universidade da Maia, e doutor em Média-Arte Digital, pela Universidade Aberta e Universidade do Algarve. Atualmente, os seus interesses ao nível da investigação relacionam-se com a Comunicação/Cultura Visual, o Design de Comunicação e a Média-Arte Digital.