Perfeita Imperfeição
Fechem os olhos. No início, não havia nada a não ser Deus. Por isso, Deus criou-nos para nos amar e nós amarmos a Ele. Acontece que, se nós lhe desobedecermos, Deus envia-nos para o Inferno após a nossa morte para sofrer eternamente. É algo bastante bruto de se aprender quando se é apenas uma criança, mas foi exatamente isso que aprendi no meu colégio católico.
Adquiri o famoso temor a Deus que todo o bom cristão deve possuir e esse temor expressou-se em mim na forma de perfecionismo, tanto no que fazia como na maneira em que me apresentava aos outros. Tinha que ser perfeita em tudo o que fazia, não porque o queria ser, mas por medo das consequências para a minha alma.
Não querendo parece demasiado sentimental, a prática de gravura permitiu-me mudar a maneira como me vejo e me relaciono com o mundo a meu redor. Ao longo da vida sempre questionei o que tinha aprendido no colégio, tinha sempre o medo de errar presente em todos os aspetos da minha vida. Isto começa a alterar-se no meu 11o ano, quando o meu professor de História da Arte me apresentou um “retrato feito com facas”; uma gravura de um autorretrato de Kathe Kollwitz no qual o caos dos cortes na matriz criava um todo harmonioso. O erro dava lugar à perfeição.
Este mesmo professor também me introduziu à ideia de Erotismo na Arte. Ao explicar o Êxtase de Santa Teresa de Bernini, fez questão de notar o sorriso maroto do anjo, a sua seta em direção à zona pélvica da santa, que certamente era a causa da sua expressão de êxtase. Numa aula de apoio sobre gravura japonesa, em vez de apresentar os típicos exemplos de Hokusai e Hiroshigue, introduziu-me à gravura erótica japonesa.
Mostrou-me O Sonho da Mulher do Pescador com os seus ínfimos detalhes, as camadas sobre camadas de cor, as várias possibilidades desta prática artística. A partir daí, comecei a tentar praticar sozinha, frequentei alguns workshops e, na faculdade, realizei o meu primeiro grande projeto de gravura:
a Bíblia Erótica.
Este projeto foi muito importante para mim, não só porque foi o começo da minha exploração da religião Católica e do Erotismo que continua até hoje, mas também porque me permitiu atacar os meus maiores medos e receios. Conceptualmente, deu-me a oportunidade de estudar mais profundamente a Bíblia, ajudando a desconstruir o que tinha enraizado em mim mesma e deu-me até a liberdade de explorar outros aspetos que tinha receio de abordar na minha prática artística e vida pessoal como a sexualidade.
Este trabalho em particular consiste em pares de episódios e personagens bíblicas que exploram temas por norma censurados pela interpretação oficial da Igreja. Por exemplo, as minhas duas primeiras gravuras falam sobre a homossexualidade. Na primeira gravura da série, David e Jónatas, representa o episódio bíblico no qual Jónatas despe as suas vestimentas e oferece-as a David, sinal da sua submissão e lealdade ao futuro rei de Israel.
Após a morte de Jónatas, David exclama: «Admirável era o teu amor por mim mais do que o amor feminino.». Qualquer manual de catequese que aborde esta relação interpreta-a como uma grande amizade. Já na segunda gravura, Rute e Naomi, Naomi pede a Rute que volte
ao seu povo, ao que Rute lhe responde: «Não me instes a te abandonar, afastando-me de junto de ti, porque para onde fores irei também, e onde te estabeleceres, estabelecer-me-ei. O teu povo é o meu povo, e teu Deus o meu também.» que é uma das principais passagens bíblicas lidas durante os ritos de casamento pela Igreja, que só aceita casais heterossexuais.
Neste projeto também me dei a liberdade artística de reinterpretar alguns episódios bíblicos através de uma visão contemporânea, como em Sansão e Dalila e Jael e Sísera, onde explorei práticas de BDSM, de submissão sexual e inversão dos papéis de género no que toca aos atos ditos ativos e passivos.
Também, tanto na Bíblia Erótica como em outras gravuras como S. Sebastião e Aftercare, tento demonstrar o meu gosto pela História da Arte, área na qual estou atualmente a frequentar um mestrado, através da representação das personagens e espaços com uma estética dita Medieval, bem como referências literais a obras de arte. No lado mais prático, com a técnica de Gravura, saltei de pés juntos na constante possibilidade de ter de começar tudo de novo. A eterna permanência do erro em todas as fases desta técnica permitiu-me aceitá-lo e até mesmo incorporá-lo no meu trabalho. No final, acabo sempre com uma impressão completamente original, impossível de ser replicada.
Com Gravura, já não tenho medo de ir parar aos infernos e arder eternamente. Agora, tenho apenas o êxtase e a alegria do sentimento de concretização de um grande projeto e uma contínua curiosidade de saber que desafios vou enfrentar nos meus próximos projetos. Daqui, caminho em direção ao Céu.
Beatriz Mestre é Ilustradora licenciada em Arte Multimédia na FBAUL e atualmente é mestranda em História da Arte e Património na FLUL.
A sua obra consiste principalmente em ilustrações realizadas a gravura a linóleo, nas quais explora o tema do Erotismo aplicado à religião Católica com várias referências à História da Arte.