O Medo do Desenho
Acho que tenho medo do desenho, por isso gravo.
Na verdade, o medo parece-me um forte e válido catalisador no nosso caminho, e no meu, leva-me a lugares que sem ele desconheceria por completo.
Este medo direciona-me, faz-me percorrer outras ideias e expressões e de cada vez que o enfrento com uma goiva na mão, sei que será mais fácil olhar a fria folha em branco.
É que a folha branca devolve-me algum vazio, como se tivesse a capacidade de julgar a minha falha, como se evidenciasse uma linha mal direcionada, um desenho inexpressivo e desequilibrado. Sempre achei que tinha muita dificuldade no desenho, no passar das formas proporcionais daquilo que via, de me manter focada no que visualizava e na maneira como o passava para o papel. Sabia que era uma questão de treino, de prática, de ginasticar o olhar, e a mão.
Algumas vezes, quando me permitia a experimentar diferentes materiais as coisas mudavam um pouco, com o pincel era difícil responder a pormenores, com um lápis era complicado aumentar largamente o formato, mas esta desadequação
dos materiais ao que queria desenhar revelou-se como algo importante e precioso, era nessa experimentação
e desadequação que surgiam os desenhos mais espontâneos, mais soltos, mais expressivos. Afinal a desproporção, o aparente desequilíbrio era um lugar de descoberta e interesse.
O medo da falha e do erro continua em mim, mas ele já não me limita o movimento. Sem dúvida a prática e a livre experimentação contribuem em muito para isso e também o que vou aprendendo com colegas artistas, gravadores e ilustradores nas suas diferentes formas de trabalhar.
Quando faço esboços para um projeto de gravura, sobretudo em linóleo, procuro não fechar o desenho na sua totalidade.
Ao contrário de quase tudo na minha vida, na gravura adoro
a imprevisibilidade do que surge, dos constantes erros que
vão acontecendo, da forma como tenho que reduzir a minha velocidade, do foco que necessito para não errar ou para
não me magoar, das revelações que que se vão sucedendo desde o desenho à gravação, desde a tintagem à impressão.
Quando ataco o linóleo, e deixo as goivas romperem os brancos do desenho há uma sensação de liberdade. Essa matéria maleável mas resistente não me deixa fazer as coisas da maneira que sei e aprendi, mas ensina-me a chegar a outros lugares de descoberta, onde o desenho se vai revelando em formas densas, em volumes visíveis e tácteis.
É no desenho que a goiva faz, nesse escavar ora lento e fluído, ora resistente e sôfrego que encontro a linguagem que melhor traduz o que quero e penso.
É que na gravura o desenho transforma-se. As linhas delicadas ganham brutalidade, as formas tornam-se densas, a aparente graciosidade do traço a grafite ganha outra força que resulta em algo diferente do que inicialmente esbocei. Essa transformação do desenho em algo novo, com mais matéria, com mais contraste, com mais níveis de leitura, dá, a meu ver, uma outra vida ao meu trabalho.
Nem sempre preciso definir tudo, deixo muitas vezes que o material me guie.
Não gravo com a necessidade de estar sempre a visualizar o alto contraste que a técnica permite. Gosto de aguardar pelo momento da impressão para finalmente ver o que esta revela.
E é também nessa altura que muitas outras decisões podem alterar em tudo o desenho inicial – a escolha da cor, as possibilidades que esta propicia, a sobreposição de matrizes e a coincidência ou não das mesmas, tudo isso traz novas leituras à imagem gravada.
A folha branca e fria vai então compondo-se de cor, de tramas
e texturas visuais e tácteis que se podem repetir um sem fim
de vezes e compor de inúmeras formas numa mágica marcante da gravura – o múltiplo.
Essas infinitas possibilidades de composição revelam-se construtivas, fazem-me desfrutar do desenho, do processo,
sem medo de saber onde chegarei no fim.
Sofia Morais nasceu em 1979 em Lisboa, onde vive e trabalha.
Licenciada em Design de Comunicação, pelas Belas Artes de Lisboa, é designer gráfica e ilustradora freelancer.
De momento dá aulas na disciplina de Projeto e Tecnologias do Curso de Produção Artística – Especialização em Gravura/ Serigrafia da Escola Artística António Arroio.
Desenvolve regularmente oficinas de ilustração e gravura.
Fez o curso de Ilustração no CITEN (Gulbenkian), ao qual se seguiu o de Pintura e Desenho e várias Oficinas de Ilustração Infantil no Ar.Co. Uma oficina com Isabelle Vandenabeele muda a sua visão sobre a ilustração e leva-a a descobrir e entregar-se à gravura no atelier Contraprova, do qual faz parte desde 2015.
Expõe regularmente o seu trabalho e tem colaborado em diversas publicações e projetos.
Em 2020 foi selecionada para o Catálogo Ibero-América ilustra com um com conjunto de ilustrações em gravura. Em 2017 foi distinguida com o 3º Prémio no Encontro Internacional de Ilustração de S. João da Madeira, e em 2014 com uma Menção Honrosa. Integrou recentemente a 3ª Bienal de Ilustração de Guimarães e últimas edições da Mostra de Ilustração Portuguesa na Festa da Ilustração de Setúbal.