A estória de um desenho
O meu avô era artista. Foi daí que ganhei o “bichinho”.
Quando era pequena costumava passar a maior parte do tempo em casa dos meus avós. Havia muito pouca coisa para fazer lá, além de ver os 4 canais da televisão portuguesa, na hora dos desenhos animados. Por isso passava os dias a desenhar, criando personagens ou representando os meus ídolos das séries animadas. Às vezes sentava-me e ficava quieta a imaginar uma aventura com ou sem brinquedos, até um lápis meio gasto servia como personagem. O pequenino azul era o herói, o grande e castanho era o vilão. Sempre senti que vivia noutra esfera, por isso brincava dentro da minha cabeça. Lembro-me da realidade não ser suficiente para mim, daí desenhar, porque o desenho permite-me participar em momentos nos quais nunca consegui encaixar e uma banda desenhada permite-me viver uma história diferente da realidade.
O meu processo criativo passa primeiro pela ideia de uma imagem. Essa imagem tem de despertar alguma coisa em mim. Normalmente é um sentimento abstrato que depois vai sendo descoberto conforme o desenho, mesmo que seja um desenho figurativo, ele não é tangível ao início. E, por isso o desenho descobre-se a si próprio. Quando faço uma ilustração, ela conta histórias que eu própria desconheço. É a partir da imagem que depois tento perceber que história está ali, pois é me completamente alheio. O desenho tem a sua própria personalidade e as personagens também. Assim que descubro o mistério, começo a deitar cá para fora a minha própria interpretação da história. É assim que eu faço Banda Desenhada.
Quando surgiu a oportunidade de fazer uma BD, estava no primeiro ano de mestrado e andava meio perdida. Como a BD foi sempre uma coisa que gostei, decidi juntar o projeto de dissertação à publicação da BD. Claro que me senti perdida também, pois não tinha ideia da história que queria contar. E um dia, tive um sonho. Era sobre o terreno baldio que existia ao pé da minha casa. Nesse sonho, eu estava escondida a gozar o fato de ninguém saber onde estava e ninguém saber que estava a observar.
Um vizinho idoso, que costumava andar com uma máquina fotográfica sempre pronta a disparar, foi uma das pessoas que quase me viu no sonho. Foi quando ele se esqueceu do que tinha visto, que me comecei a transformar numa criatura selvagem. Os meus braços e pernas começaram a ficar muito compridos, enquanto agarravam o chão. Não sei porquê, mas tive a sensação de que o meu rosto também mudara. A partir daqui, soube que a minha estória seria sobre este monstro. Como fui eu que me transformei, agarrei em mim e comecei a pintar o meu rosto com tinta, a transfigurar-me, tentando chegar à forma final posteriormente em Desenho.
Depois de criares um “mundo”, ele deixa de te pertencer, a partir do momento em que o tornas visível aos outros, ele passa a ser de todos. Isso é fantástico, porque quando materializas uma ideia, ela passa a ser real, e é a realidade que tu gostavas que fosse ou o medo que tu queres ultrapassar, ou algo que tu queres gritar. Nos desenhos, posso viver situações que na realidade eu nunca teria coragem para viver, posse expressar os meus medos, posso fazer um desenho gore, quando na verdade nem um corte consigo ver sem me dar náuseas; fumar um cigarro quando nem sequer fumo. Consigo criar um mundo perfeito, onde os gatos dominam os telhados sem ter medo que eles caiam, quando na verdade nunca deixaria os meus subir um parapeito. É que eles no desenho não caem, eles voam.
E é isso que o desenho é para mim: uma forma de viver tudo sem limites e sem medos.
Rita Alfaiate nasceu em Lisboa em 1992. Desde muito cedo começou a desenhar como brincadeira, dando vida às suas histórias e personagens. Talvez por isto, encontre na Banda Desenhada a sua principal realização como artista. O seu percurso passa pela publicação dos álbuns No Caderno da Tangerina (2017), Tangerina (2019) e Banda Desenhada – Ensaio sobre a Incoerência Estilística (2019).
Participou também na antologia Humanus (Escorpião Azul, 2018) e no Zine Legendary Horror Stories (Legendary Books, 2019) com a curta Nós, da autoria de Nuno Duarte.
Actualmente, frequenta o Doutoramento em Desenho na FBAUL.